Arquivos da memória
No ano já distante de 1976 saiu em livro uma recolha de "Bilhetes Saloios do Templário", reunindo as crónicas que Fernanda Leitão vinha publicando no semanário tomarense, e que a tinham tornado um fenómeno de popularidade, nesse tempo só talvez comparável a Vera Lagoa.
Em homenagem à nossa correspondente no Canadá, reproduzo aqui a reacção de Rodrigo Emílio, então vinda a público no semanário "A RUA" (7/10/1976).
E esta, hein?!!!
BILHETE CRÍTICO SALOIO (?) PARA A FERNANDA LEITÃO
Fernanda Leitão:
Cedíssimo o seu nome me saiu ao caminho: a partir dos meus 12/13 anos, vezes sem conto o ouvi, e sempre a bordo da mesma voz. - E sabe a Fernanda Leitão na voz de quem?
- Ora se sabe!... Não sabe mesmo outra coisa... Pois de quem havia de ser, senão na voz, afabilíssima e tão travessa, do nosso bem-lembrado Tomaz de Figueiredo?!...
Depois... Ao depois, o Tomaz morreu-nos: andava eu, nessa altura - poeta graduado em alferes miliciano do corpo expedicionário -, por terras de Portugal moçambicano; os anos correram, entretanto, abateu-se em peso sobre a Nação Portuguesa toda esta tragédia de extensíssimas dimensões, a que o nosso Tomaz, felizmente, foi poupado: felizmente para ele, e mais felizmente ainda para os desalmados fautores de tanta traição e vilania juntas, que bem teriam de se haver com ele (olá se tinham!); e sobrevieram, de permeio, os grotescos acontecimentos de 28 de Setembro de 1974, a reboque dos quais acabei por curtir ano e meio de exílio, sem saber como nem porquê, dado que para aí não fui visto nem achado, e do ponto em que a minha aversão a Spínola já vinha de longe, não conheceu até hoje tréguas nem limites, e a mim nunca ele me mobilizaria fosse para o que fosse - quanto mais, agora, para uma manifestação de apoio a monóculo de tão curto alcance...
Adiante.
Voltei há meses a esta exígua courela lusitana. E eis que, de novo, o nome de Fernanda me saíu ao caminho: cruzo-me com ele centos de vezes ao dia; ouço-o, por assim dizer, a cada passo. - E sabe na voz de quem?
- Um pouco na voz de toda a gente.
Agraciado com a comenda de honra da Ordem d'O TEMPLÁRIO por "sua excelência a opinião pública", o nome literário da minha boa amiga anda aí de boca em boca, na boca de todas as conversas - a dar que falar, a dar que fazer, a fazer faísca, postado na primeira linha de um combate verbal de vida ou de morte, guarda-avançada de um dos mais intemeratos, e também mais talentosos, "esquadrões" da nossa Imprensa.
Piparote daqui, piparote dali, em crónicas e bilhetes de levar tudo raso à gargalhada aí anda a Fernanda a declarar guerra sem quartel a estes descaídos tempos, de impostura e vilipêndio, que a Portugal tocou viver.
Ora, estes seus saborosos bilhetes saloios - que de saloios nada têm... àparte o labéu de o serem - dizem-me, primeiro que tudo, da razão que tinha o António Ferro quando afirmava que "em Portugal não se cai no ridículo: sobe-se no ridículo! "E dizem-me, também, que estou diante de um especialista de verdades-como-punhos, com rara faculdade de saber dar o talento ao manifesto, sem olhar a quê nem a quem. Mordaz, ardoroso, desbordante, o fundibulário de mão-cheia que V. é consome-se, por aqui, à chama alta, com uma tenacidade tudo o que há de mais inabalável e com uma voltagem polémica de altíssima-tensão. Inclusivé, a temperatura temperamental a que a Fernanda Leitão escreve sempre é de tal maneira palpitante, em verve e irreverência, que só por isso dá gosto aturá-la por escrito - e aturar as insolências, impertinências e inconveniências sem nome, que não poupam nada nem ninguém. (De resto, tem V. a particularidade, extremamente tocante, de não se poupar sequer a si própria, tratando de reservar invariavelmente para si as primeiríssimas piadas, e de as suministrar a si mesma sem qualquer comiseração. E não é das notas menos cativantes da sua destemperada e nobilíssima maneira de ser, essa de V., Fernanda, começar por se insultar de morte a si própria, antes de passar a outros, e de sistematicamente guardar para si a primeira grande leva do seu bem abastecido, e engraçadíssimo, repertório de injúrias.)
Apesar de (quase) insuportável, pode crer que, à leitura, é mesmo um prazer suportá-la - suportar a criatura irascivelmente humoral que a Fernanda é -, só porque tesamente se bate sempre (e, se nem sempre com carradas de razão, invariavelmente com carradas de talento) no campo de batalha das coisas públicas, desferindo à queima-roupa as tais verdades-molestas-como-punhos, que só fazem bem - que só fazem lindamente - a quem nas produz, e que mal de espécie nenhuma fazem também àqueles que levam com elas em cheio pelas ventas.
Agindo com essa "frequência-de-blague" que sempre a caracteriza (e que lhe está mesmo na massinha do sangue!),não se ensaia a Fernanda mesmo nada em administrar - por via... postal, digamos, visto que de bilhetes se trata - toda a sorte de fulgurantes e fulminantes brutalidades que lhe vêm à cabeça. E é precisamente, nos momentos em que as maiores e mais sadias enormidades lhe saem em rajada pela boca fora, ou transmitem a cem-à-hora do bico da caneta para o papel, que a Fernanda Leitão se nos revela a grande artista, linguística e emocional, que de facto é.
Por outro lado, não deixa de ser igualmente assinalável que a sua agressividade satírica tenha entrado de serviço justamente quando nós mais precisão tínhamos de contar com ela, a fim de procedermos à instrução desse requisitório enorme, dessa enorme diatribe, desse imenso libelo, que - por todas as razões e por mais uma -importa pôr de pé, aqui e agora, para que tudo conste bem constado!
Chega de gente a redigir em bicos de mãos, e com as pontinhas dos dedos, e muito ao de leve! Chega de gente a exprimir-se de mansinho e em voz pequenina! A estas horas, importa, sim, falar forte e feio, como a Fernanda o faz: patentear todos os créditos de truculência com o vernáculo!
Em matéria de reparos a fazer-lhe, não posso dizer que tenha tirado o ventre de misérias. Mas, ao menos por agora, não havia que falar das "misérias" dos Bilhetes, que são muitas, e sim das suas "grandezas", que não são poucas...
Pessoalmente, sinto que lhe devia este bilhete, não sei se saloio se não...
De toda a maneira, bem-haja a Fernanda pelo simples facto de existir e de ser como é.
E, posto isto, vão sendo horas de me ir chegando.
Acena-lhe, amistosamente, do meio d'A RUA, o
RODRIGO EMÍLIO
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