ENTRE A AVAREZA E 0 ESBANJAMENTO
Na nossa sociedade em evolução, fala-se agora muito em austeridade. A palavra flutua como ameaça porque sugere cinto apertado, poda em abundâncias a que estávamos afeitos, necessidade de mais trabalho, vida dura em suma. Por outro lado, há quem diga que os portugueses somos atreitos a certa prodigalidade, gasta-se sem olhar ao futuro, e o espírito de poupança passa-nos muito a juzante. Os avarentos, por via de regra pouco exceptuada, não abundam entre nós. Quando algum aparece, alegra a povoação em que vive e cai, agarrado aos cofres, nas "bocas do mundo". A generosidade, porém, situa-se entre o esbanjamento e a avareza. É uma virtude delicada, guiada pela bondade e pela prudência, e deve ter um lugar eminente nos dias de hoje se quisermos ser homens verdadeiramente fraternos. Tanta gente sem emprego, tanta gente deslocada do seu habitat nativo ou habitual, tanta gente vinda a menos - deve despertar em nós o generoso espírito de comiseração e dádiva. A austeridade, quando levada por espírito de autodomínio, de parcimónia para nós e de atenção ao próximo transforma-se numa verdadeira educação permanente. Mas é claro que, para se remediarem certas situaçoes, impõe-se que os necessitados se prestem a ser ajudados. Não faz sentido que aquele que não tem para a boca se envie a cinemas caros e a gastos inúteis, quiçá profundamente deseducativos.
Corre mundo a fama da grande casa Lafitte. Quem a fundou, com seu banco e mais sucursais de moeda e tesouraria? - Foi Jaime Lafitte. Vendo-se um dia sem trabalho e sem pão, dirigiu-se a um Banco famoso - já se vê, a pedir emprego. O director do Banco e mais algum pessoal gritaram que estava tudo cheio, tudo preenchido nos quadros, tivesse paciência, talvez mais tarde, esse "mais tarde" que quase nunca chega... O director, lá isso delicado e francês, acompanhou-o à porta. Ao descer um degrau, Lafitte debruçou-se e apanhou do chão qualquer coisa que brilhava. - Isso gue é? - perguntou o director. - É um alfinete. Não sou um avarento, mas tenho por costume aproveitar tudo o que pode ter algum préstimo. E o certo é que, em determinadas alturas, bolsos como o meu nem para um alfinete. O director ouviu e, dentro de dias, Lafitte entrava para aquele Banco onde, de posto em posto, ascendeu ao topo directivo, independentizou-se e veio a fundar a Casa famosa que tem o seu nome. Esta história não nos manda apanhar os alfinetes caídos na rua. Remete-nos, porém, a um procedimento de atenção às situações vitais onda a modéstia, o resguardo, a prontidão em nos adaptar ao que é pequeno e custoso - são condições de subir para mais desafogada posição. Sem avareza, sem a esquálida sovinice, mas por igual sem descuido nem esbanjamento.
Posto isto, digamos que a generosidade está precisamente entre a avareza e o esbanjamento. Mas deve ser praticada a nível concreto e individual. É fácil compadecermo-nos abstractamente das agruras por que passa uma nação. (Ah! os turcos, coitados, com aquele tremor de terra! Que pena temos dos indianos que passam fome! E a Nigéria? Crianças fotografadas, só ossos...) Mas os necessitados de ao pé da porta, o "saneado" que se cruza connosco, o subalimentado que nos estende a mão nem essa comiseração exclamativa, às vezes, recebe. Ora, as soluções a problemas sociais têm de ser dadas de modo muito concreto. A generosidade tem de ser aplicada em casos singulares. O homem verdadeiramente generoso não manda, do alto de um cabeço, repartir alguma coisa dos seus haveres; vai ele mesmo ver onde se dói o queixoso, contacta com as carências, mistura-se à vida, vai a casa do próximo. E poucas virtudes - se é que alguma, na hora actual, é mais propícia para comunicar um sentimento de felicidade - como a generosidade dadivosa para com o próximo. Gosto muito de exemplos. Diziam os antigos que os exemplos arrastam. Quando são bons, levam-nos à soga. Quem não ouviu falar, em Portugal, na Fundação Gulbenkian7 Calouste Gulbenkian, o bom arménio que durante a segunda guerra mundial veio viver entre nós, deixou-se cativar pela gentileza simples do nosso povo e deixou cá copiosos dinheiros. Mas não é isso o que quero sublinhar. Na sua biografia, escrita pelo Dr. Azeredo Perdigão, vem um facto fundamente exortativo à generosidade. Tinha Calouste Gulbenkian, como é sabido, uma colecção de obras de Arte, das mais preciosas do mundo. Um dia, um amigo pediu-lhe algumas para organizar um álbum. Mandou-as ele, e ao serem-lhe restituídas, o Amigo, ao agradecer, lembrou-lhe um provérbio da Arménia, terra nativa do grande milionário: "Quando morreres, só terás nas tuas mãos aquilo que tiveres dado!" Eis aí uma expressão do sentido último da generosidade. A Fundação Gulbenkian ou o simples "copo de água dado em meu nome" do Evangelho, equivalem-se. Naquela hora cabeira que é forçosa para todos nós, teremos nas mãos o que tivermos dado com ampla, humana, fraterna generosidade...
JOAO MAIA
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