terça-feira, agosto 31, 2004

O partido dos jornalistas

Um problema bem presente em todas as sociedades mediatizadas do Ocidente é o frequente desfasamento entre a opinião pública e a opinião publicada.
Normalmente a questão só é discutida em privado, e em voz baixa. A prudência manda calar. Mas todos os sujeitos activos da sociedade a conhecem.
E há momentos em que salta aos olhos dos observadores mais distraídos. São as ocasiões em que surge aos olhos de todos a importância do que chamo o "partido dos jornalistas". São aquelas em que de súbito a classe se mobiliza e com absoluta indiferença pelo público destinatário oferece em espectáculo autista a exibição despudorada do seu poder.
Essas ocasiões são sempre despoletadas por um tema em que a classe se reconhece e resolve tomar como seu. O tema do aborto, como tem sido exemplo gritante este caso do barco do aborto, é um desses pontos de mobilização geral. Repare-se bem no que têm sido os noticiários destes últimos dias. Dificilmente se imaginaria uma situação em que fossem tão contrastantes a absoluta indiferença popular e a histeria desenfreada da comunidade jornalística.
Estive há pouco a percorrer os telejornais de todos os canais televisivos portugueses. Todos à mesma hora a transmitir longos e exaustivos directos sobre as peripécias do barco do aborto, subalternizando completamente todo o noticiário nacional e internacional.
A quem observe para lá das palavras, depara-se um cais deserto, três deputados sedentos de publicidade, um barquito no mar alto com seis pessoas a bordo, uma das quais se diz ginecologista, e um contentor no convés, onde foi montado o que eles chamam pomposamente uma "clínica ginecológica".
Um não-acontecimento, uma insignificância agitada freneticamente por um pequeno grupo de activistas inteiramente marginal às preocupações e aos interesses da população, é ampliado a épicas dimensões perante a perplexidade geral.
Que fazer face a este fenómeno de distorção, em que o mensageiro cria a própria mensagem?
É um excelente assunto para estudar mais desenvolvidamente nas escolas de jornalismo.