quinta-feira, agosto 19, 2004

Olhar com os olhos abertos

A começar o seu delicioso livrinho intitulado "Vida de Maquiavel", Giuseppe Prezzolini salienta que Nicolau nasceu com os olhos abertos; e comenta que naquele tempo o caso não era vulgar, pelo que despertou geral atenção e curiosidade.
Também agora não é comum encontrar quem, simplesmente, ande por aí com os olhos abertos; miasmas e distracções as mais variadas, como espessas cataratas, toldam as vistas dos homens nossos contemporâneos.
Lembrei-me disto há bocado, ao ler o texto de regresso do nosso amigo, e aqui tem inteira justiça e cabimento o designativo, que escreve a Casa de Sarto.
O que nos trará cegos para as nossas coisas? Que estranha miopia nos impede de ver com precisão e rigor tudo o que temos à nossa volta? Visão desfocada, vista cansada, o certo é que olhamos todos os dias e não vemos, ou vemos e a imagem passa sem o exame analítico do sentido crítico que deveria ser o revelador de toda a massa de elementos recolhidos na observação exterior.
Pobres são os tempos, infelizes os países, em que os homens olham e não vêem. E todavia nunca como hoje vivemos sob o império da imagem, da sucessão alucinante das imagens; um outro amigo, que é mais filosofante, chamava a isto "o reino da imagem fugaz". Queria ele dizer que não fica nada, do que sucessivamente passa a velocidade estonteante no nosso moderno animatógrafo.
Esta conversa toda para dizer que gostei muito do relato da excursão do JSarto; e fez-me lembrar ainda um outro camarada, que também olhava e não gostava do que via, e falava do que ele chamava o amor amargo pela pátria: dizia este que nós amamos a pátria porque não gostamos dela. Essa amargura que nasce do desgosto do olhar, essa revolta contra a aceitação resignada do que está, ainda representam a única esperança de vida e renovação.