segunda-feira, agosto 23, 2004

SOBRE LIVROS

Coisa melancólica é ver um burro carregado de livros. Mais melancólica se, em vez do simpático e orelhudo substantivo, vemos debaixo da carga um animal pertencente à espécie dos catarríneos sem cauda... 0 meu leitor está-me a entender e eu vou adiante. Se a criatividade esmorece debaixo do peso da erudição, então o muito saber nada aproveita e em vez de um agente estimulante o muito ler gera fadiga e tédio e transforma-se numa gulodice de madraços. Tivemos, já lá vão muitos anos, um professor tão destituído de imaginação que só tinha um exemplo para aligeirar (pensava ele!) as aulas em que se exauria a despejar a ciéncia compendiária. O exemplo era ir à cidade mais próxima comprar um relógio para dar a um amigo. Aquele mofino relógio servia para tudo. E era deveras hilariante ver abalar o mestre, por frios e canículas, rumo à cidade, para contentar o amigo que ninguém sabia quem era. Leu todos os livros sobre a matéria. E entendeu-os? Ou só respigou umas sentenças e amesquinhou tudo o mais? "Não é o muito saber que sacia a alma", disse um sages. Tão verdade é isso que ainda agora tivemos aí a prova, no torvelinho político que agitou a grei. O povo, armado de sensatez e senso comum, a certa altura sobrepôs-se aos políticos que, vamos lá a supor, tinham lido todos os livros e, por sobremesa, todos os folhetos explicativos do Carlos Marx. Desandaram em completo ridículo umas campanhas de culturalização que enviaram seus oráculos pelo país em fora. Eram grupitos que amantavam sua ignorância debaixo dum verniz citadino. O povo reunia-se e achava-se, a breve trecho, muito mais instruído que esses Sólons de pacotilha. Sítios houve em que os escorraçaram antes de sol posto, remetendo-os à redacção de jornais que "Deus tem", onde se doeram de terem caído no meio de gente reaccionária! Elevando o caso a categoria histórica, um amigo nosso, com risonho ademã, disse-nos que o episódio de Maria da Fonte é constante na forma do povo se haver com os políticos. Quando o político surge com a cartilha avariada, o povo pega num chuço.
Pedra com pedra não faz boa liga. E a ignorância inculposa do povo por vezes cinca com a sabença dos letrados, mas de forma que não vem daí mal ao mundo. Abespinham-se os eruditos mas o povo lá segue o seu caminho. É famoso o caso de certo professor rural que timbrou em preparar os alunos para receberem o inspector e o atolambar com uma lição de truz. Ao aluno mais vivaço encomendou a lição das Descobertas. Chegado o inspector, disposta a aula em círculo, começaram a chover as perguntas. - Quem descobriu o Brasil? trovejou o inspector. O petiz, muito embora ensaiado, titubeou e negou-se a responder. Espanto do professor e espanto do inspector. - Quem descobriu o Brasil? - O mocito atemorizado e julgando, pelo tom do homem, que a descoberta não era boa, respondeu, tremelicando: - Eu não fui, senhor inspector! O inspector sorriu, volveu-se para exames menos molestos e a coisa ficou por ali. O professor é que estava uma fera. Desarvorou dali e ao chegar a casa referiu à mulher o desaire: - Uma coisa destas, ó mulher! Uma semana de preparos e vai-se a ver o Manuel da Anitas, ao perguntar-lhe o inspector quem descobriu o Brasil sai-se com esta: - Eu não fui! Isto é da gente perder a cabeça! - Ó homem, muito arrufado de génio me saíste, e talvez não fosse ele! O homem ficou fora de si ao notar que a mulher participava de tão enorme ignorância sobre o alteroso feito. Saiu porta fora e esbarrou, a poucos passos, com o pai do mocelho. - Olhe que o seu filho sempre me deixou ficar mal parado! - Como assim? - Pois ontem na cara do inspector que lhe perguntava quem tinha descoberto o Brasil saiu-se com esta resposta: - Eu não fui! - E o senhor professor acreditou? Olhe que ele é muito mentiroso. Tire inculcas que se calhar foi ele! Quer dizer, a ignorância popular por vezes enrola-se de tal maneira em torno da sabença dos livros que nem à fina força se consegue desfazê-la, Mas é em coisas de somenos aplicação à vida prática. A ciência dos livros afasta, muita vez, os letrados daquela sabedoria que assiste aos humildes e os guia através da vida sem extravio de maior.
Há já alguns séculos um dos maiores sages europeus escreveu um livro a que deu o título de "De docta ignorantia" - a ignorância douta. É que há uma sabedoria que se toca de aparente ignorância, como há uma visceral ignorância que se engrinalda de muita livralhada, de muito panfleto, de muito jornal, de muita tinta derramada...
JOÃO MAIA