sábado, setembro 18, 2004

Recordando Azinhal Abelho

Sempre que em Évora calha em conversa falar com alguém menos novo sobre os cortejos históricos e etnográficos que em tempos assinalaram as Festas da Cidade, por São João e São Pedro, surge logo espontânea uma exclamação saudosa: - nunca mais se fez nada assim... Também é essa a minha reacção, lembrado ainda da minha meninice, quando toda a cidade se reunia para ver o desfile, olhar pasmada para aquela assombrosa encenação, os quadros magníficos sucedendo-se perante a nossa vista e imaginação...
Ninguém associa porém o nome esquecido de Azinhal Abelho a essa recordação gravada na memória de todos. Como certamente também os organizadores dos "santos populares" de Lisboa, e das suas marchas, não fazem ideia sobre quem tenha sido a pessoa que usou tal nome. E talvez mesmo em Elvas, na sua Estalagem de Santa Luzia, não haja ninguém com recordação sobre homem de um passado tão remoto. Só mesmo Orada, a sua aldeia, teve a ideia de dar o seu nome a um centro cultural, que não sei se, ou como, funciona.
Isto para dizer que toda a vida e obra de Azinhal Abelho foi marcada por amores constantes, imutáveis desde o seu aparecimento na vida cultural do país (as suas "Confidências de um Rapaz Provinciano" receberam o prémio de poesia Antero de Quental, dois anos depois de o mesmo ter sido atribuído a Fernando Pessoa) até ao seu final (os projectos que o animaram mesmo na fase final da vida visavam ainda levar à cena os autos populares que o fascinavam, e o último livro que viu impresso foi a antologia denominada "Cancioneiro do Vinho Português").
Hoje deu-me para evocar o artista (também era pintor e desenhador, de mérito reconhecidos) que nos deixou o vastíssimo "Teatro Popular Português", e o delicado lirismo ruralista de "Eu Fui Guadiana Abaixo", "Canto Chão", "os Anjos Cantam o Fado", "Domingo Ilustrado", "Abecedário de Lisboa", "Os da Orada", "Elogio da Província", "Meridianos Líricos" e sei lá que mais.
A composição poética que se segue também não deve ser conhecida
de ninguém... Na verdade foi impressa pelo autor numa pagela avulsa que ofereceu a alguns amigos no Natal de 1951. Todavia, é bem representativa das paixões que marcaram sempre a obra do autor: a sua província, o seu povo, o teatro.
Eis pois à apreciação geral um poema de Azinhal Abelho bem à maneira de Gil Vicente.


MONÓLOGO DO MAIORAL

Alto lá! Ó Camarada!
Nós somos d'Além do Tejo
E viemos ao cortejo
Assinalar o lugar
Lá das terras do Suão.
Nunca avistamos o Mar.
Nós somos também Nação,
Oito vezes secular,
Oito vezes geração.
Da cabeça, até aos pés,
Olhai-me bem que eu sou terra,
Sou a voz que não engana;
Co'a minha manta e cajado
Guardo o meu trigo e o meu gado,
Sou da terra alentejana.
Quero amostrar-me com brio,
Do que sou e do que valho
Nas galas do meu suor,
Que são o orgulho maior
Das gestas do meu trabalho.
Quem me julgar com apreço
Acerta num bom sinal,
Dizendo que no começo
Fui quem formou Portugal.
'Scutem a voz em surdina
Dita em coral de mistério:
- Eu sou a terra-madrinha
Que deu Portugal-Império, -
Nautas, santos, à ventura,
Porque Deus assim o quis,
Partiram da terra dura
Mas deixaram a raiz.
Por graças e por louvor,
A raiz tornou de novo
A dar galhos e a dar flor
A esta terra e este povo.
- Ainda hoje é terra firme...
- Ainda hoje é povo-chão...
O Alentejo não tem sombra.
- Digo eu, que sou ganhão:
Não tem, não tem nem a quer
Só tem a sombra da terra
E essa porque é mulher.
Nem quis avistar o mar.
Ó Mar! Tu és perdição...
Angústias, vidas sem par,
Por lá ficaram no Mar...
Ó Mar! Tu és um ladrão.
Na vida dos portugueses
Não sei o que representas.
Dizem alguns: és a glória.
Mentira, és mar das tormentas.
Foi um mal de Portugal
Botar os olhos pra além;
Na esperança de se alargar
Fugiu do colo da mãe.
Ficámos nós e cá estamos;
Cá 'stamos nós, os do chão.
Rego a rego, o nosso arado,
Foi transformando um eirado,
De castro fortificado
Numa serra de pão.
Sem pompas, esta epopeia,
Sangue e terra, nua e crua,
Ergueu padrões no alqueive
Cruzando a espada e a charrua.
Maiorais, tristes como eu,
Numa legenda sem fim,
Com enxadas e aivecas
Vão transformando em jardim,
Os arrifes das charnecas.
As nossas vestes sem cor...
As nossas mãos encardidas...
Olhai-as com tanto amor
Como se fossem garridas.
Não temos flores, é verdade...
Só as nossas raparigas
Trouxeram, lá duma herdade,
Em vez de rosas, espigas.
Nem a vista se alevanta,
Nem mesmo o riso pagão;
A nossa gente, se canta,
É em voz de cantochão.
Mas esquecidos no mapa
Sem ninguém saber de nós,
Ergo aqui o meu cajado,
Bato com ele o sobrado
E alevanto a minha voz:
"Nossos lamentos são ais,
Tristezas de mal-querer.
Somos como nossos pais.
... E SEJA O QUE DEUS QUISER".

AZINHAL ABELHO

1 Comments:

At 9:29 da tarde, Blogger Nothingandall said...

Amanhã 13 de Abril de 2010 faz 99 anos que nasceu Azinhal Abelho. Irei no meu blog (onde as efemérides se associam à poesia) transcrever este poema com link para aqui. Uma boa semana.

 

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