quarta-feira, setembro 29, 2004

A TRANSFORMAÇÃO DO MUNDO

Estou a ler dois livros que nos falam da transformação do mundo. Dois livros que nos fazem estremecer, um pela lucidez do pensamento, outro pela crua verdade da vivência pessoal. O primeiro, nascido do desengano de um pensador perante a decomposição do Ocidente, o segundo da desfiguração humana, característica da experiência comunista. Trata-se de "O Modelo Desfigurado", de Thomas Molnar, e de "O Tremor dos Homens", de Paul Goma - cujo subtítulo não é menos sugestivo: "Pode viver-se hoje na Roménia? " - aparecidos ambos em Paris; imagens do mundo em que vivemos. Húngaro o primeiro, romeno o segundo, os dois escritores fazem parte daquela geração do pós-guerra que, em etapas diferentes, quero dizer, em tempos distintos, já que Goma é mais jovem do que Molnar, tiveram de enfrentar o Estado e partir, escolhendo o exílio não só para continuarem a escrever como para continuarem a viver. A diferença entre os dois está em ser Goma um novelista e falar-nos dos seus últimos meses em Bucareste, enquanto Molnar é professor de Ciências Políticas numa Universidade de Nova Iorque, e relata a transformação experimentada pela sociedade norte-americana nas últimas décadas, modificando as instituições modelares que estavam na sua base e dirigindo-se, pouco a pouco, para um tipo novo de sociedade totalitária.
Sabemos, através de tantos livros de História e também através de tanta novela, do desengano daquela geração perdida que não podia suportar, após a Primeira Guerra Mundial, o peso despersonalizante do "big money" na medida em que os Estados Unidos, uma vez abandonado o modelo puritano, começaram a transformar-se num país dominado pelo dinheiro. Na medida, pois, em que o berço da democracia ocidental, louvada por Tocqueville, tem vindo, e não vagarosamente, a transformar-se em algo que lembra aquelas ilusões que despertavam o entusiasmo e a esperança das almas perseguidas e dos enganados do mundo inteiro. Há uma novela de Herman Broch, intitulada "Esch ou a anarquia", segundo tomo da trilogia "Os Sonâmbulos", que descreve perfeitamente o estado de ânimo de um pequeno burguês alemão dos princípios do século, enamorado da liberdade... e que tem na sua frente dois ideais para ele inalcançáveis: uma mulher a quem nunca consegue declarar o seu amor e partir para o país da última Thule, a autêntica pátria dos homens, que na mesma época Walt Whitman definia como o desejado refúgio da pureza. Escreve Thomas Molnar: “... e não se confunde a liberdade americana com um individualismo beatamente optimista, esgotando-se num activismo muitas vezes cego? E, no fim, a liberdade inicial não tem seguido insensivelmente o passo da tirania - da maioria, da burocracia, da opinião pública, dos mass media - e a autonomia local o da centralização? Sob o rótulo imutável da democracia, não nos tem conduzido a América a uma certa forma de Estado tutelar que Tocqueville considerava a grande tentação das sociedades igualitárias? "
Existe nos Estados Unidos uma tirania da sociedade civil que, segundo Molnar, está transformando as mesmas instituições em grupos de pressão, transformação que, no padrão da democracia regida pela liberdade e igualdade, reduz a nada os melhores. O esmagamento do escol é ali tão violento e eficaz como na URSS. O “big money” e todas as suas consequências visíveis e invisíveis pode ser tão deformador como o partido único. A modificação da estrutura democrática dos Estados Unidos está liquidando, pouco a pouco, mas a uma velocidade crescente, os últimos restos de uma resistência humana face à investida do desumano. O desaparecimento do romance nos últimos anos dá perfeitamente conta da crise. O romancista era o refúgio e o alívio. Através de John dos Passos, de Hemingway, de Faukner, de Fitzgerald, o homem da sociedade norte-americana podia respirar e esperar. Entretanto, a igualdade gastou-se com a liberdade, tal como na Rússia, e a novela já não é possível senão como vulgar passatempo e "best-seller" comercial. O livro-guia, salvador das essências, desapareceu, tal como o teatro depois da morte de O'Neill. O modelo político desfigurado acabou por desfigurar uma totalidade humana, que foi, durante tanto tempo, o sonho de todos.
O livro de Paul Goma é a história de um exílio. Quando os escritores checoslovacos, na Primavera de 1977, dirigiram uma carta às autoridades pedindo o respeito pela Constituição em nome dos direitos humanos, Paul Goma conseguiu convencer um grupo de intelectuais romenos a escreverem uma carta de adesão aos seus colegas de Praga. O resultado foi o isolamento. Durante meses, o novelista viveu cercado pela polícia na sua própria casa, cortadas as ligações telefónicas com o resto do mundo, proibidas as visitas, recusado o direito de publicar, etc. Toda uma série de medidas tomadas pela polícia para que a ideia não se divulgasse. Contudo, gente de todo o país, intelectuais ou empregados, camponeses ou operários, conseguia romper o cerco e estabelecer contacto com o sitiado. O terramoto também facilitou a ruptura, durante aqueles terríveis momentos de Março de 1977, quando grande parte da capital romena se desmoronou enterrando sob os escombros milhares de pessoas. O livro não é mais do que o relato daqueles momentos de angústia provocada pelos homens e pela natureza, enquanto um espírito livre pensa no destino dos outros e só pede o respeito da lei.
Goma acabou por ser expulso da sua terra e vive agora em Paris. O seu testemunho é a crónica da miséria do século XX. Já ninguém pode dizer nada. Colossos pré-fabricados, pensados sob a luz da utopia, erguem-se cada vez maiores ante a pequenez cada vez mais ameaçada da pessoa humana. Tanto no Oeste como no Leste, o homem procura esmagar o homem. Com o fim evidente de construir uma sociedade planetária dominada pelas ideias da Ilustração, que engendraram as revoluções de 1788 e de 1917. Em França e na Rússia. Desde então, vivemos uma transformação à escala mundial. Sob um ou outro aspecto, a liberdade, que é incompatível com a igualdade, foi deslocada por esta última. É este o fenómeno mais característico ocorrido no padrão das democracias, ajudado pelo desenvolvimento da técnica. O homem, como medida da liberdade, está a desaparecer sob o avanço da igualdade inumana. A realidade afunda-se sob o peso do utópico, de um e outro lado de uma grande fronteira que parecia muito firme e que, no fundo, deixou de existir.
VINTILA HORIA