sábado, outubro 30, 2004

Economia portuguesa e desenvolvimento, por Mário de Queiroz

Indicadores económicos e sociais periodicamente divulgados pela União Europeia (UE) colocam Portugal em níveis de pobreza e injustiça social inadmissíveis num país que, desde 1986, faz parte do “clube dos ricos” do continente. Mas o golpe de misericódia foi dado pela avaliação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE): nos próximos anos Portugal ficará ainda mais distante dos países avançados.
A produtividade mais baixa da UE, a escassa modernização e vitalidade do sector empresarial, educação e formação profissional deficientes, mau uso dos fundos públicos com despesas excessivas e magros resultados, são os dados assinalados pelo relatório anual da OCDE sobre Portugal, que se estende a 30 países industriais.
Ao contrário da Espanha, Grécia e Irlanda (que fizeram parte do “grupo dos pobres” da UE), Portugal não soube aplicar no seu desenvolvimento os substanciais fundos comunitários que, sem parar, deslizaram de Bruxelas durante quase duas décadas, na opinião coincidente de políticos e economistas.
Em 1986, Madrid e Lisboa entraram na Comunidade Económica Europeia (CEE) com índices semelhantes de desenvolvimento relativo e, apenas há dez anos atrás, Portugal estava um lugar à frente da Grécia e da Irlanda no ranking geral da UE. Mas em 2001, foi folgadamente ultrapassado por esses dois países, enquanto a Espanha se perfilava a pouca distância do pelotão da frente. “A convergência da economia portuguesa com as mais avançadas da OCDE parece ter parado nos últimos anos, mostrando uma brecha significativa no rendimento per capita”, afirma a organização. No sector privado, “os meios do capitalismo nem sempre se utilizam ou interligam com eficiência, e as novas tecnologias não são rapidamente adoptadas”, afirma ainda a OCDE.
“A força laboral portuguesa conta com menos educação formal do que os trabalhadores doutros países da UE, incluindo os novos membros da Europa central e oriental”, assinala o documento.
Todas as análises sobre números de investimento coincidem num ponto: o problema central não está nos montantes investidos, mas nos métodos distributivos. Portugal gasta mais do que a grande maioria dos países da UE em remunerações a funcionários públicos, no tocante a produto interno bruto, mas não consegue melhorar significativamente a qualidade e a eficiência dos serviços. Com mais professores por alunos do que a maior parte dos membros da OCDE, nem assim consegue garantir uma educação e formação profissional competitivas com os outros países industrializados. Nos últimos 18 anos, Portugal foi o país que recebeu mais subsídios por habitante em assistência comunitária. E no entanto, nove anos depois de se aproximar dos níveis europeus, a partir de 1995 começou a decaír e as perspectivas de hoje indicam que ficará cada vez a maior distância.
Onde foram parar os fundos comunitários? – esta é a pergunta insistente em debates televisivos e em colunas de opinião dos principais jornais do país. A resposta mais frequente é que esse dinheiro engordou a carteira daqueles que já tinham muito. Os números indicam que Portugal é o país da UE com maior desigualdade social e com os salários mínimos e médios mais baixos, pelo menos até 1 de Maio passado, aquando da ampliação de 15 para 25 nações. Também é o país do bloco em que os administradores de empresas públicas têm salários mais altos.
O argumento mais frequente dos executivos indica que “o mercado decide os salários”. Consultado pelo IPS, o ex-ministro das Obras Públicas (1995-2002) e actual deputado socialista João Cravinho, desmentiu esta teoria. “São os próprios administradores quem fixa os seus salários, deitando as culpas ao mercado”, disse.
Nas empresas privadas com participação estatal ou nas estatais com accionistas privados minoritários, “os executivos impõem honorários astronómicos (alguns chegam a auferir 90 mil dólares mensais, mais bónus e regalias) com a cumplicidade dos accionistas de referência”, explicou Cravinho. Esses mesmos accionistas “são ao mesmo tempo altos executivos e todo este sistema, no fundo, é em prejuízo do pequeno accionista, que vê a posta grande dos lucros ir parar às contas bancárias dos dirigentes”, lamentou o ex-ministro. A crise económica que estancou o crescimento português nos últimos dois anos, “está a ser paga pelas classes menos favorecidas”, afirmou.
Esta situação de desigualdade é cada dia mais visível, com os mais variados exemplos. O último é o da indústria automóvel em crise. Os comerciantes queixam-se de uma quebra de quase 20 por cento nas vendas de automóveis de baixa cilindrada, com preços entre 15 mil e 20 mil dólares. Mas os representantes de marcas de luxo como a Ferrari, Porsche, Lamborghini, Maserati e Lotus (veículos que valem mais de 200 mil dólares), lamentam-se de não terem capacidade para satisfazer todos os pedidos, registando um aumento de 36 por cento nas vendas.
Estudos sobre a tradicional indústria têxtil lusitana, que foi uma das mais modernas e de melhor qualidade em todo o mundo, demonstram que está estagnada porque as suas empresas não se souberam actualizar. Mas a zona norte, onde se concentra o sector têxtil, tem mais carros marca Ferrari por metro quadrado do que em Itália. Um executivo espanhol de informática, Javier Felipe, disse ao IPS que, de acordo com a sua experiência com empresários portugueses, “eles estão mais interessados na imagem que projectam do que no resultado do seu trabalho”. Para muitos, “é mais importante o automóvel que conduzem, o cartão de crédito que podem exibir ao pagar uma conta ou o modelo de telefone móvel, do que a sua eficiência gestionária”, disse Felipe, abonando que há excepções. “Tudo isto revela uma mentalidade que, ao fim e ao cabo, afecta o desenvolvmento do país”, opinou.
A evasão fiscal impune é outro aspecto que castrou os investimentos do sector público com potenciais efeitos positivos na superação da crise económica e do desemprego, que este ano chegou a 7,3 por cento da população economicamente activa. Os únicos contribuintes que cumprem o seu dever com os cofres do estado são os trabalhadores contratados, cujo salário sofre automático desconto. Nos últimos dois anos, o governo decidiu carregar mais o peso fiscal sobre essas cabeças, mantendo situações “obscenas” e “escandalosas”, segundo o economista e comentarista de televisão António Peres Metello. “Em vez de anunciar progressos na recuperação dos impostos daqueles que continuam a rir-se na cara do fisco, o governo (conservador) decidiu penalizar ainda mais aqueles que já pagam o que é devido, deixando impune a nebulosa dos transfugas fiscais, sem coerência ideológica nem visão de futuro”, criticou Metello.
A prova está explicada numa coluna de opinião de José Victor Malheiros, aparecida recentemente no diário PÚBLICO, de Lisboa, que fustiga a falta de honestidade das declarações de impostos das chamadas profissões liberais. Segundo esses documentos entregues ao fisco, médicos e dentistas declaram receitas anuais de 17.680 euros (21.750 dólares), os advogados de 10.864 (13.365 dólares), os arquitectos de 9.277 (11.410 dólares) e os engenheiros de 8.382 (10.310 dólares). Estes números indicam que por cada seis euros que pagam ao fisco, “roubam nove à comunidade”, pois estes profissionais independentes deveriam contribuir com 15 por cento do total do imposto relativo ao trabalho singular, e só são tributados em 6 por cento, explicou Malheiros. Com a devolução de impostos no termo do ano fiscal, “roubam mais do que pagam, como se um talhante nos vendesse 400 gramas de bife e nos fizesse pagar um quilo, e o caso é que há 180 mil de pessoas nas profissões liberais que, em média, nos roubam 600 gramas por quilo”, comentou com sarcasmo. Se um país “permite que um profissional liberal com duas casas e dois carros de luxo declare receitas de 600 euros (783 dólares) por mês, sem ser questionado ao menos pelo fisco, e ainda por cima recebe um subsídio do estado para o ajudar a pagar o colégio particular dos filhos, isso significa que este sistema não tem o mínimo de moral”.
MÁRIO DE QUEIROZ (Jornalista chileno do IPS)