segunda-feira, outubro 04, 2004

Histórias da Música

Esta entrada bem podia chamar-se "lembrando o Cónego Alegria, Alfredo Keil e o Hino Nacional". Pareceu-me porém longo título para escasso texto, e vou então abreviar.
Vem esta evocação a propósito da homenagem que com toda a justiça se entendeu prestar ao Cónego José Augusto Alegria nestas Jornadas Internacionais sobre a Escola de Música da Sé de Évora.
Como muitas vezes acontece, uma lembrança traz-nos recordações em tropel, e assim aconteceu ao ver evocada a figura do Doutor Alegria. Foi a todos os títulos uma personalidade marcante, na sua singularidade que só os mais próximos puderam apreciar e na projecção da sua actividade cultural, que aí está ao apreço de todos.
Ao longo de trinta anos de convívio muita coisa ficou que poderia ter lugar numas pinceladas rápidas de recordações alusivas, mas hoje queria tão só lembrar um episódio ocorrido vai agora fazer 26 anos.
Curiosamente tinha-me lembrado do mesmo quando há dias vi na televisão um programa onde se falou de Alfredo Keil e lá encontrei de novo as fantasias que nesse Outubro de 1978 traziam o Padre Alegria furibundo quando o encontrei no Largo dos Colegiais, em frente à Igreja do Espírito Santo, a poucos metros de sua casa, na ladeira íngreme que ainda se chama pitorescamente Rua da Cozinha de Sua Alteza.
Nesse tempo eu andava em constante vai e vém, ora em Lisboa ora em Évora, e quando nos encontrávamos era sempre ocasião de pôr em dia a escrita atrasada. Ora nesse dia o meu ilustre amigo, fazendo jus à sua conhecida irritabilidade, que não era menor do que a bonomia que também usava, estava furioso e não se calava com um escrito de origem oficial que lhe tinha chegado e onde o autor atribuía a Alfredo Keil, o autor da música de "A Portuguesa", ideias e práticas revolucionárias, pelo menos alistando-o postumamente nas fileiras republicanas.
O Doutor Alegria era intrinsecamente reaccionário, contra-revolucionário, monárquico, tradicionalista, e tudo daí para cima - daí para baixo nada. E acontecia que nessa época, para além do trabalho da "Portugaliae Monumenta Musica", tinha entre mãos o estudo do espólio musical do arquivo do Palácio Ducal de Vila Viçosa (do que resultaria aliás o seu livro dedicado à música na Capela Real de Vila Viçosa) onde existia e existe material original de Alfredo Keil. E dizia-me ele repetidamente, documentos e factos em seu apoio, que tudo era mentira, o Alfredo Keil tinha sido sempre um bom e fiel súbdito de Suas Majestades, não era mais do que calúnia a arregimentação póstuma. Tanto insistia com a demonstração que eu lhe retorqui, com naturalidade, que escrevesse - escreva lá isso, não custa nada, afinal o senhor é que é o especialista...
Ainda recalcitrou, relutante, que não tinha onde publicar, mas isso já eu esperava e atalhei de imediato a fuga. Continuou a barafustar, que de todo o modo ninguém lia, que não valia a pena, resmungou qualquer coisa sobre atirar pérolas a porcos, mas no fim ficou de pensar nisso e depois me diria alguma coisa. Eu já sabia que aquela era a forma dele dizer que sim, e fui-me embora esperando o prometido artigo.
Dias depois apareceu a nota sobre Alfredo Keil que nasceu dessa irritação, e que foi publicada no semanário que alguns estarão a pensar, com um agradecimento do Manuel Maria Múrias ao erudito musicólogo, "nosso leitor e amigo" (era assinante desde o primeiro número).

"AINDA ALFREDO KEIL"
"Como a história é feita à base de documentos e não se compadece com os círculos concêntricos nos quais os "progressistas" da nossa terra a pretendem enlear, acontece com frequência incrível que os tiros que dão lhes saem pela culatra! Vem isto a propósito de certo escrito que por aí anda, pago pela Secretaria de Estado da Comunicação Social, o que significa que é pago por todos nós, e no qual o escriba tem o desplante de insinuar que Alfredo Keil era republicano, pelo menos, se não mesmo conspirador revolucionário. A verdade, porem, é outra e assenta, não no reles preconceito dos ideólogos simplistas que tudo pretendem reduzir ao mesmo denominador comum, que é o seu, mas nos factozinhos que são a matéria que serve para escrever a história.
O hino nacional "A Portuguesa" saiu das mãos de Alfredo Keil como marcha patriótica contra os "bretões" que nos tinham imposto o Ultimato. Não era nem republicana nem monárquica. Era simplesmente um protesto patriótico contra uma agressão estrangeira. O texto poético de Henrique Lopes de Mendonça que pouco depois foi enxertado laboriosamente na dita marcha, também não saía dos moldes intencionais do autor da música. Tratava-se de um texto patriótico nascido num momento de exaltação e fervor dos portugueses que se viam ofendidos na sua dignidade de povo que preza a independência nacional, mesmo quando ofendida pela então poderosa Inglaterra. O facto de a República ter proclamado em 1911 o hino de Alfredo Keil e Lopes de Mendonça como hino nacional só prova que, ontem como hoje, os revolucionários, à falta de talento próprio, se sabem enfeitar com o talento alheio, espanejando-se depois com o leque de penas de pavão que lhes não pertencem. Este é apenas um dos muitos casos que fazem largo rol nas "iniciativas culturais" dos abrilinos! Nem sei como não decretaram por maioria de esquerda a "Grândola Vila Morena" como hino nacional, lavrando solene certidão de óbito à marcha patriótica de Alfredo Keil que hoje se canta ou deveria cantar com as lágrimas nos olhos.
Mas vamos aos factos que provam que Alfredo Keil foi sempre monárquico e nada teve com a República - que nem conheceu, visto ter falecido na cidade de Hamburgo em 1907.
Em Vila Viçosa, no Palácio Real, guarda-se no arquivo respectivo, uma composição de Alfredo Keil "Le Poème du Printemps/ Cantata Idylle/ avec solos, choeurs et grande orchestre". É uma obra de qualidade que o autor ofereceu a D. Carlos e à Rainha Senhora D. Amélia em 7 de Junho de 1886, menos de um mês passado sobre o casamento real. A "hommage respectueux de l'auteur" já significa alguma coisa, mas não tudo. A encadernação que envolve a obra, com letras de prata aplicada sobre veludo e cantos também de prata, aumenta a ideia de apreço e respeito que Alfredo Keil dedicava à Família Real. Isto passou-se em 1886, antes de existir "A Portuguesa".
No mesmo arquivo, e agora na secção dos impressos, encontramos a Ópera "Serrana", considerada a melhor das obras de Alfredo Keil, oferecida pelo autor ao Rei D. Carlos em 28 de Setembro de 1901, muito depois de composta "A Portuguesa". Também neste caso Alfredo Keil não se limitou a fazer uma oferta de circunstância. Mandou fazer uma encadernação especial com os títulos impressos a ouro, mostrando desta maneira o alto preço em que tinha o Rei de Portugal. Pode acrescentar-se que esta edição de "Serrana" tem ilustrações de Alfredo Guedes, António Ramalho, Columbano, Manuel Macedo, Roque Gameiro e Visconde d'Atouguia.
A conclusão que se pode tirar é que Alfredo Keil, de origem alemã, foi mais patriota do que muitos portugueses que aqui nasceram e prosperaram. E mais ainda: fez pela música portuguesa o que nenhum dos chamados artistas progressistas fez até ao dia de hoje, por mais trovejados que andem por aí certos "génios" de fancaria que apenas vivem e vicejam no pântano lodoso e movediço em que esbracejam e ululam na ânsia de serem vistos e aclamados pelas saltitantes rãs que fazem coro, coaxando…"
"JOSÉ AUGUSTO ALEGRIA
"