domingo, novembro 28, 2004

ANTÓNIO SARDINHA E A CIDADE DE ELVAS

Quem a avistar ao longe, Elvas amuralhada e fortificada, com o casario a fulgir coloridos claros, parece um presépio. Cá dentro, as ruas são estreitas, íngremes, ruas que parecem ainda talhadas por um Machado de Castro com mãos de gigante, criando incidentes e viventes na forma, imaginados pelo escultor castiço.
Em 1936, quando iniciava a minha curiosidade sobre escritos e escritores conheci aqui, nesta Elvas, um museu que foi para mim uma revelação. O arquivo era extraordinário; quadros, espécimens de arte popular, manuscritos, enfim, todo um recheio que estava bem longe de deparar na província, com admiração. O edifício pertencera ao antigo Colégio dos Jesuítas com um alpendre e lá dentro, entre pó e papeladas, vivia o seu director — um velho simpático de cabelos brancos, dando-se inteiramente às lides dos livros. A figura irradiava parecer romântico. No meio dos outros mortais, num café por exemplo, onde se falasse de todas as coisas utilitárias, negócios, etc., distinguia-se à distância — pelo vestir desprecocupado, pela barbicha branca, pelos traços vincados pelo tempo — tudo a respirar vida interior. Muito se assemelhava a uma figura de composição dum dos tais presépios populares, completando a nossa impressão de quem visita este burgo, com os olhos frescos. António Torres Carvalho era o seu nome. Possuía um jornal e uma revista; fora editor de variadíssimas obras; era bibliotecário e dirigia o museu de Elvas e toda a gente tivera e tinha pela sua pessoa um respeito e veneração digno de nota. Para adquirir uma biblioteca, que legara à cidade, gastara parte da fortuna que possuía em bens de raiz. Dessa primeira visita guardo na memória este pedaço de diálogo bem vivo.
— E António Sardinha?
— Morreu a tempo, diz-me. Doutro modo a fortuna da mulher ter-se-ia sumido e esta ficaria na miséria.
Não quis ouvir mais. Não era isso que esperava. Perguntei pelo Mestre a Torres de Carvalho na esperança de saber qualquer revelação que me contentasse outra sede que não aquela. Numa tabacaria tinha comprado o "Roubo da Europa" que repousava na mesa onde conversávamos. O volume bailava-me na frente, enquanto as palavras do diálogo me atormentavam. «Morreu a tempo...» E era Torres de Carvalho que me dizia isso, a pessoa que eu julgava ser capaz de me elucidar em Elvas, com mais competência sobre Sardinha! Eu que julgava essa morte uma catástrofe! Gelou-me tal comentário a respeito de Sardinha. Após isso, a nãos ser nas páginas dos seus livros, tenho sempre medo de falar com alguém sobre a personalidade do autor de "Glossário dos Tempos". Mas Janeiro aproxima-se e nesta época, em Elvas, aparece-nos sempre a evocação do Mestre.
Um oficial miliciano que por aqui passou a dizia-me: - Que estranho caso o de Sardinha! Em Elvas pouca gente fala dele!
Em princípio talvez pareça ser assim. Mas se aprofundarmos bem, existem devotos que lhe guardam fanaticamente a memória.
Conhecem o José Picão Telo? É o tipo mais completo e perfeito de arraiano peninsular, que a Natureza criou. Esse e outros (poucos mais, valha a verdade) consagram ao Mestre a veneração merecida. Era José Picão Telo o seu discípulo dilecto. Na sua escrivaninha se guardam, como relíquia, fotos e autógrafos de António Sardinha. Quando nos encontramos, eu e ele, neste marasmo quotidiano que é a contemplação da mesma paisagem, sem cambiantes violentos, a nossa conversa é sempre sobre Sardinha. Foi José Telo que me ajudou a explicar a razão, para mim enigmática, da opinião de Torres de Carvalho sobre Sardinha. A política não perdoa. Torres de Carvalho era impotente para compreender a personalidade de Sardinha, no que ela tinha de transcendente e heroicamente nacionalista. Profeta e poeta, o âmbito da figura de Sardinha tinha que ser mais amplo do que a estreiteza dos muros das muralhas citadinas. Só quem militasse na mesma fé (boa fé, aliás) poderia cavalgar lado a lado com ele. E depois ninguém é profeta na sua terra...
Um dia, no arquivo do museu municipal, o bibliotecário actual — senhor Domingos Lavadinho — indicou-me um molho de cartas endereçadas por Sardinha a Torres de Carvalho. Li-as e reli-as com interesse sôfrego. Data a primeira de Monforte em 1902. Uma letra miudinha, de colegial ainda, com caligrafia certa e inclinada à direita. Sardinha era novo e andava no liceu por essas alturas. Mas já a história local o preocupava. Recortamos um excerto que merece registo pelas conclusões que se podem tirar para o estudo do seu vulto.
«...Confundido agradeço a V. Exa. a subida fineza com que me honrou na manhã de 27 e o adeus que só nós os dois compreendemos, pois pela auto-sugestão ele me foi comunicado quando eu volvia lacrimosos os olhos a essa heróica e ínclita cidade, dirigindo-lhe as minhas despedidas e fixava as torres de Al-kasova, parecendo-me lobrigar, através das brumas de miopia o minarete limítrofe da porta de Tempre! Mais agradeço a V. Exa. o cuidado que teve com que m`as enviou. Rogo-lhe que me alcance a cópia do período do manuscrito do Pires que trata da estada de Afonso IV em Santa Maria a velha, do castelo desta vila.
Se puder no dia 16 ou 19 do próximo irei ver V. Exa. Incluso remeto a V. Exa. uma fotografia de N. S. da Conceição não enviando mais porque, quando tirava a da ponte, também para a enviar a V. Exa., assim como muitas mais, deixei cair a máquina que se partiu toda. Paciência!
Parto no próximo dia 2 para Portalegre, indo residir na Rua da Mouraria n.º 136
».
Devia ter quinze anos o rapaz que escrevia esta carta. Partia para Portalegre e no ano seguinte, de Coimbra aparece-nos editado em estreia literária o seu entreacto dramático "Serão Ducal". É pomposamente enternecedora esta carta quase colegial. Desconfia o mundo sempre dos meninos precoces. Sardinha porém desmentiu a regra, o que só serve para a confirmar.
A tendência renovadora do futuro historiador que viria a ser assinala-se já nessa estreia literária, numa nota que nos chama a sua atenção escrevendo:
«Reconhecendo-a por boca de D. Joana, ilibada da culpa, porque morreu, no Serão Ducal sigo a versão por muito tempo sustentada, mas afinal desmentida pelos valiosos estudos sobre ela, de Luciano Cordeiro, e a lenda ainda hoje corrente em Vila Viçosa. Desvio-me, pois, da verdade, por assim me convir mais à ficção, avisando aqui para que me não tachem de ignorante e pouco lido no assunto».
A correspondência de Sardinha com Torres de Carvalho acentua-se. Nesse tempo, o segundo possuía uma tipografia editando obras de vulto.
António Sardinha de Monforte concorre aos jogos florais de Salamanca, quando se encontra já na Universidade de Coimbra. A sua "Lírica de Outono" granjeia-lhe o primeiro prémio, concretizado numa salva de prata lavrada, que ainda hoje se encontra na Quinta do Bispo, em setecentas e cinquentas pesetas e um alfinete de safiras e rubis que lhe segurava a flor simbólica na lapela da batina, que o deviam ter deslumbrado. Eugénio de Castro apadrinhara-o e prefaciara-lhe o "Tronco Reverdecido". Em Elvas, no seu Correio Elvense, Torres de Carvalho saudava a entrada no templo, em primeira página, com fotografia e prosa de louvor.
Como não podia deixar de ser, Sardinha, nado e criado em terras de Monforte, é em Elvas, bem antes dos jogos florais de Salamanca, que vem nas férias e aqui trava relações.
Com Torres de Carvalho já as vimos numa carta. O meio era pequeno, mas duas ou três pessoas sempre se encontram consagradas às letras. O Dr. Francisco de Paula Santa Clara, latinista notável, morando numa casa cheia de legendas eruditas na língua de Virgílio (casa esta que nos sugere um castelo situado no largo do Pelourinho) chamava a Sardinha, num preciosismo de linguagem — é José Telo que mo diz — esperançoso mancebo! Sardinha porém, como se demonstra por outra carta a Torres de Carvalho, quer muito à memória do Dr. Santa Clara.
«Exmo. Senhor
Acuso a recepção da apreciável carta de V. Exa., dizendo que com a notícia do falecimento do erudito clássico, o Exmo. Dr. Francisco de Paula Santa Clara, meu chorado amigo, fiquei como interdito, como fulminado.
— Maldita parca que roubas à Humanidade vidas tão preciosas! —
Pensei em escrever um necrológio, que V. Exa. honrando-me extraordinariamente, faria inserir nas colunas de O Correio Elvense, mas vai tarde, — razão porque rogo a V. Exa. a subida fineza de o fazer publicar num dos próximos números. Para que o indefeso trabalho do consumado latinista não fique sepultado nas penumbras do esquecimento, ofereço-me, mesquinho, para anotador do Hissope, prestando sincero preito à memória do abalizado literato e investigador. Associo-me, como do meu telegrama V. Exa. depreenderá, à sua profunda e intrínseca dor.
Sou de V. Exa.
Att.º Ven.dor e Adm.dor
António Maria de Sousa Sardinha
»
Mais outra ainda sobre o mesmo tema:
«Portalegre, 10 de Outubro de 1902
Exmo. Senhor
Acuso em meu poder um manuscrito do malogrado Dr. Santa Clara, — manuscrito que diz respeito aos priores de Monforte.
Rogo a V. Exa. a fineza de me ceder todo e qualquer apontamento do nosso chorado amigo, referente a Monforte, ou ao seu concelho assim como a cópia d`uma diatribe manuscrita que diz respeito ao bispo Azevedo Coutinho, se me não engano.
Sobre o necrológio diga-me V. Exa. se se digna publicá-lo. Vou prestes dar uma biografia do Dr. Santa Clara, razão porque rogo a V. Exa. algumas fotografias do mesmo, da sua habitação, etc.
Creia-me V. Exa.
Muito Att.e e Adm.dor
António Sardinha
»
As viagens a Elvas e as suas cartas continuam com propostas editoriais, que, creio bem, não chegaram a ser efectuadas. Para Torres de Carvalho são sempre dirigidos os seus escritos.
«Illmo. e Exmo. Senhor
Tendo devidamente compiladas para dar à estampa todas as poesias conhecidas de António de Sousa Maldonado, que suponho ainda parente de V. Exa., venho propor-lhe, Illmo. Exmo. Senhor, a sua edição.
O Senhor Dr. Teófilo Braga, a cuja opinião as submeti, afirmou-me que a sua publicação seria um belo serviço, pois constituiriam um altíssimo documento da poderosa influência literária de João de Deus.
São precedidas dum breve estudo biográfico da minha lavra, que saiu no último número da Revista de O Século, onde V. Exa., o poderá ler, tomando na devida conta horrorosas gralhas que o deformam quase por completo.
Estou crente que V. Exa. não deixará de anuir, tanto mais que segundo me consta, já em tempos esteve para o fazer. É atendendo a isso que em primeiro lugar me dirijo a V. Exa., e também a não temer as explorações do costume, de que usam e abusam os nossos editores, que só pegam no que cheire a escândalo e em mais nada quase.
Eu desejarei apenas da amabilidade de V. Exa. alguns exemplares para oferecer a amigos e escritores das minhas relações. Depois a venda do livro há-de ser razoável —sempre é poeta morto! E com meia dúzia de artigos de boas firmas pelas quais me responsabilizo, a despesa estará garantida.
Brevemente terei ensejo de oferecer a V. Exa. um exemplar de um estudo histórico sobre o Poeta Cristóvão Falcão; que com prefácio de Teófilo Braga está nos prelos da casa editora do Porto, Lello & Irmão, e outro dum livro de versos, também prefaciado, e por Eugénio de Castro. Então pedirei a V. Exa. permuta com as obras do mestre Dr. Francisco de Paula Santa Clara, recentemente publicadas.
Sem mais, aguardando o favor duma resposta breve
Sou com toda a consideração
Att.º Vend.or e Obg.do
António Sardinha
»
Os desmandos da República estão no auge. Se consultarmos o Correio Elvense lá vemos Torres de Carvalho a dar guarida e louvores ao regime a que aderira desculpando-os, ou por outra esquecendo-os. Sardinha vai-se desiludindo.
«Vamos a ver! O que me choca são as intolerâncias. O assalto à redacção do Ilustrado envergonha um partido republicano».
«».
Meu prezado amigo
Remeto-lhe a versalhada que me pediu. Como outro dia lhe anunciava, não é uma coisa declamatória nem chauvinista. É um apelo à alma da terra por um povo de lavradores, que lavrando e cantando fez a sua história. Lavrando a charneca ou cortando as águas do mar — o que se equivale. Ora pois.
Dado o meu temperamento de lírico e a orientação que preside à minha Arte, outra coisa não se poderia esperar de mim. Ficará satisfeito?
Não sei, quem dá o que tem mostra o que deseja! Outro dia com a pressa com que lhe escrevi não lhe agradeci nem devolvi os seus desejos para comigo em face do ano que entrava. Faço-o hoje e muito calorosamente. Ajunto-lhe os meus cordiais parabéns pela justiça que fizeram, nomeando-o para essa administração. Bem sei que o cargo, no actual momento, é de responsabilidade. Mas é um motivo para me aplaudir como seu amigo que sou, pois tenho a certeza do belo lugar que vai fazer.
Aceite, pois, um apertado abraço.
Quanto às coisas políticas sinto-me descontente. Esperava mais! No entanto, não descri. Vamos a ver! O que me choca sempre são as intolerâncias. O assalto à redacção do Ilustrado envergonha um partido intelectual como o partido republicano.
Se houver de imprimir a poesia peço-lhe provas.
Estou aqui até 15 à tarde.
Um abraço do seu amigo certo
António Sardinha

Tomás Pires era outra afeição de Sardinha, em Elvas.
Convivera com ele e aprendera-lhe as lições. A morte do coleccionador das Cantigas Populares Portuguesas vai achá-lo em Monforte, a vila dos três castelos, como ele canta, já formado em Direito, casado e relacionado com os projectos do Integralismo.
A caligrafia desta carta é segura, inclinada à esquerda, rápida, nervosa e varonil, largamente desenhada. Reparando nesta forma de letra e no seu último manuscrito ninguém nota diferença. Parecem da mesma data.
«Meu caro Amigo
Não me demoro a dizer-lhe a impressão profunda com que recebi a notícia inesperada do falecimento do bom António Pires. Dou-lhe os pêsames pela perda que duplamente hoje deploro — como elvense e como amigo. Eu não fui ao funeral porque não soube do triste acontecimento a tempo de partir. Por meu sogro conheço a maneira como Elvas se portou para com esse seu ilustre filho.
Indigna e obscurece o coração roubando-nos o desejo para tudo. É meu fim prestar ao morto a homenagem que lhe devo. Venho pedir-lhe por isso a primeira página do seu jornal para o número de sábado a oito dias. Quero escrever um largo artigo em que estude a obra do nosso querido amigo e lhe assinale o seu altíssimo valor nacional. A crónica do meu Amigo Hipólito Raposo na próxima segunda-feira no Diário de Notícias é-lhe também consagrada. Não haverá um retrato capaz para eu o fazer sair no mesmo jornal?
Pode o meu Amigo no próximo número do seu jornal anunciar a saída dos dois artigos.
Monforte, 7-VIII-913
Com um cordial aperto de mão,
Seu amigo certo
António Sardinha
».
A distância entre António Sardinha e Torres de Carvalho vai-se estabelecendo.
Este fora companheiro de Afonso Costa, no Curso de Direito em Coimbra. As suas convicções romântico-liberais não atingiam o trilho de Sardinha. Fora um dos primeiros administradores republicanos do concelho de Elvas. O regime parecia consolidar-se. Ninguém percebia onde Sardinha queria chegar. O seu grupo, que havia de exercer tamanha influência nos destinos da Nação, esse sim, sabia o fim que pretendia.
«Meu prezado amigo
O artigo sobre Tomás Pires excedeu as marcas duma simples comemoração de jornal e vou-o concluindo agora com mais de cinquenta linguados. É a apreciação da obra do morto em face do movimento nacional que a nova geração levanta sob o título de Integralismo Lusitanista. Como a promessa lhe está feita diga-o o meu Amigo se mesmo com essas dimensões o quer. Ao seu jornal lhe pertence. E no caso afirmativo sairá num número ou dois — como melhor puder — fazendo-se uma separata a seguir — claro que por minha conta. O meu Amigo decidirá desculpando-se para com os seus leitores de qualquer forma no número próximo.
Sabe que o Teófilo Braga num dos últimos livros — a Idade Média (recapitulação 5.ª) faz a Vasco de Lobeira uma referência extensíssima?
Monforte, S. C., 15-VIII-913.
Sem mais
Seu velho amigo e agradecido
António Sardinha
».
Com esta correspondência cava-se mais fundo a diferença entre a maneira de pensar de Torres de Carvalho e António Sardinha. Este combate por uma ideia contra-revolucionária. Carvalho tem por cima da sua secretária o retrato de Vítor Hugo. Não apreende os voos de inteligência desse rapaz que vive a batalhar nas hostes das letras portuguesas.
«Meu bom Amigo
Estou com um forte ataque de influenza que mal me deixa associar duas ideias — são justos os motivos da sua ponderação. No entanto sem deixar de os reconhecer eu prefiro não publicar o artigo a modificar-lhe uma só palavra.
Desde que o meu espírito se desembaraçou das mentiras liberalistas, eu não me prescrevi outro dever que não fosse o combatê-lo. Sem dúvida que António Tomás Pires nunca atribuiu à sua obra o intuito integralista que a nova geração lhe confere. Mas como escritor de tradição era natural que se decidisse entre duas ideias em choque. Republicanos se diziam com Rocha Peixoto e Severo os principais trabalhadores da Portugália. Todavia se algum dia se alevantar o edifício que eles delinearam, só com a monarquia pura será possível. Também não é um propósito de ataque a referência a esse embusteiro literário que é o sr. Abílio de Guerra Junqueiro, mimoso poeta de Freixo de Espada-à-Cinta. Eu quero significar com essa alusão a faina desnacionalizadora dos nossos literatos encartados, enquanto o grupo modesto dos folcloristas nos salvava da perda total das riquezas tradicionais tão somente.
Dou-lhe estas explicações porque mas merece. Quanto ao facto de dizer mal da república, bem pior se tem dito nas colunas de A Fronteira que é um periódico mais militante que o seu. De resto como o meu artigo ia assinado, uma nota da redacção alimpava de qualquer juízo menos certo o meu Amigo. Mas eu respeito os seus escrúpulos tanto mais que não faltaram a António Tomás Pires homenagens condignas. Mas não respeito menos a integridade do meu pensamento e das minhas convicções.
Eis porque — repito — prefiro ficar no silêncio a alterar uma expressão só que seja da minha prosa.
Agradeço-lhe a sua lealdade e desculpe-me a maçada inútil que lhe preguei.
5-4-914.
Sem mais e com cumprimentos
de minha mulher
seu amigo certo e grato
António Sardinha
P. S. — Não recebeu a Nação Portuguesa?
A. Sardinha
»
Em Dezembro de 1917 a revolução de Sidónio Pais triunfa e Afonso Costa vem para Elvas, como prisioneiro. Como isso já nos parece distante!
É da história local que nos temos de socorrer. O jornal Vida Nova, jornal das direitas, relata o acontecimento assim:
«Afonso Costa. Vindo em comboio especial, chegou debaixo de uma escolta sob o comando de um subalterno, a esta cidade, o chefe da formiga branca, que ficou internado numa dependência do Forte de N. S. da Graça. Na estação ninguém o esperava e até hoje não nos consta que algum dos seus administradores desta cidade se tenha informado do estado do heróico defensor da guerra.
É momento oportuno para lembrar à autoridade competente que a Exma. esposa do ex-presidente de ministros tem feito chegar às mão do prisioneiro umas malas que pelo seu excessivo peso se tornam suspeitas. Olho vivo; olho vivo e pé leve é que a guarnição do forte da Graça deve ter
».
A Fronteira, semanário republicano democrático, opõe-se, grita, combate e conta-nos como chegou D. Alzira Costa: «No comboio de quinta-feira passada chegou a esta cidade a Exma. Senhora D. Alzira Costa, esposa do sr. Dr. Afonso Costa, acompanhada dos seus extremosos filhos. Da estação ao Hotel Central, onde se encontravam hospedados, foram os ilustres hóspedes conduzidos no landau do sr. Raul Rebelo, que acompanhado do sr. António Henrique Pinto os esperou na gare do caminho de ferro.»
Das grades do seu cativeiro o ex-presidente de Ministros, como ironicamente lhe chama o Vida Nova, contempla uma cidade em que ele talvez não tivera nunca reparado. Os influentes locais agitam-se. Do Hotel Conceição, sua esposa escreve cartas para os jornais desmentindo boatos. Torres de Carvalho lembra-se agora do seu companheiro dos bancos da Universidade e manda-lhe livros da sua editorial. Os agradecimentos de Afonso Costa são do seguinte teor:
«Exmo. Sr.
António José Torres de Carvalho
Meu caro antigo condiscípulo:
Agradeço-lhe muito a amável e valiosa oferta das suas excelentes edições da Jornada da Universidade de Coimbra, muito curiosa e digna de apontar-se aos nossos contemporâneos, do Cancioneiro Popular Político, que também contém esclarecimentos para certos rumores de hoje, semelhantes a algumas trovas de outrora, dos Sucessos de Aires de Varela, que estou lendo com emoção, e dos Capítulos do Concelho de Elvas, em que certamente encontrarei um eloquente testemunho da nossa vida municipal de outras eras.
Terei muito prazer em o abraçar como antigo condiscípulo, que já não vejo há tantos anos.
Pedia-lhe ainda o favor de me emprestar da sua biblioteca particular ou da Câmara qualquer publicação ou memória descritiva sobre este Forte da Graça, e ainda os seguintes livros:
— Estudos e Notas Elvenses, de Tomás Pires;
— O volume da História de Pinheiro de Chagas que se refere às nossas guerras com a Espanha de 1640 a 1667 (creio que é o 10.º ou 11.º); e
— O Portugal Contemporâneo, de Oliveira Martins.
Se sair daqui directamente para a liberdade, irei visitá-lo, e aproveitarei a ocasião para lhe pedir que me mostre as antiguidades, as muralhas, os monumentos e o Museu Arqueológico.
Com um abraço, sou, seu Ant.º
Cond.º e const.º amigo,
Afonso Costa
».
Numa cidade de Província, como é Elvas, estes assuntos tomavam aspectos belicosos. À distância em que os vemos hoje têm o sabor das memórias jornalísticas de Correia Marques.
Mas se Elvas pode ser tomada como cidade de Província, é inconfundível sob outros aspectos. A sua situação fronteiriça, ela mesma armada em praça forte, povoada por regimentos que dominam toda a vida quotidiana, dava-lhe e dá-lhe ainda hoje importância de primeiro plano na vida da Nação.
Quando refugiado em Portugal, Marcelino Domingo avistava, acompanhado, das ameias do castelo, o forte da Graça — é sempre José Telo o nosso companheiro de elucidações — mostram-lhe o citado monumento acrescentando: — daqui saem todos para as cadeiras do Ministério! Marcelino vai para Espanha com a República triunfante e manda um telegrama a José Telo onde dizia: «El fuerte me ha dado buena pata». Tem sabor a anedota e alguma coisa mais está nas entrelinhas disto tudo.
Não admira pois a atenção que Elvas merecesse a Sardinha. Afonso Costa, preso, quer saber-lhe a história. "No Forte da Graça" era o título da resposta com que Sardinha o acusou. Não conheço maior libelo histórico do que esse. Nunca Sardinha foi tão violento, nem mesmo quando acusava Junqueiro ou Teófilo, ou demonstrava como traição os feitos de Gomes Freire de Andrade.
«Mas que dirão essas páginas — escreve, referindo-se à história de Elvas — a um estrangeiro da nossa tradição, que outra coisa não fez durante uma existência perdida senão desmenti-la e espezinhá-la? Debruçado das varandas da sua cela, Afonso Costa há-de sentir que toda a paisagem o acusa, e cresce para ela, interpretando o sentir de quantos passaram e na pedra morena da velha cidadela fronteiriça deixaram insculpidos o seu gosto heróico em serem obedientes até na sepultura. Assim, se na meia sonolência da sua sensibilidade moral, as leis supremas do sangue podem erguer ainda a voz, Afonso Costa talvez se esteja a estas horas confessando a si próprio como réu de traição imperdoável.»
Sardinha era assim violento. Ai de quem lhe caísse nas mãos como adversário!
Torres de Carvalho, o primeiro a amparar os passos literários desse adolescente que chegaria a águia real, não previra o alcance dos seus voos. Hoje era ele (aquele que lhe pedia conselhos e notas e espaço para os seus artiguelhos de principiante) a dar-lhe lições de cátedra.
É possível que sua velhice se tornasse azeda. Ele Torres de Carvalho que falhara e que ali estava resumido a secundária tarefa de coleccionador de papeis, sem saber sequer tirar ou prever o alcance transcendente da sua própria missão, ele Torres de Carvalho, ia eu dizendo, estava ali naquela casa forrada de livros, no meio de pó, com o retrato de Vítor Hugo por cima da secretária e as recordações dum autógrafo de Zola a fazerem a admiração dos visitantes. Era simpático este homem, mas impotente para acompanhar e compreender a personalidade de António Sardinha.
À distância de uma dúzia de anos, após a morte do autor da Epopeia da Planície, quando perguntei a Torres de Carvalho por ele, mal compreendi o que se passara através das suas respostas.
As cartas da sua correspondência foi, com a ajuda de alguns — José Telo já citado — que conheceram bem quer Sardinha quer Torres de Carvalho, quem me decifrou o comentário da primeira tarde que passámos juntos — eu e o Torres de Carvalho.
É possível que estas questões provincianas não tenham interesse de maior. Mas se o Chiado é Portugal — como o afirmou o nosso Forjaz Trigueiros no seu duelo de carapinhadas com o José Régio — saiba-se por lá também que nós, os provincianos, temos que nos entregar a um passatempo favorito — ou palavras cruzadas, ou jogo de azar, ou estudo de dialectos, ou ainda colecção de armas brancas — como diz o Régio no Príncipe com Orelhas de Burro. Eu dei-me a essa deambulação: averiguar, analisar e comentar as cartas de António Sardinha. Em vez de ir às montras da Portugália, às Exposições do S.P.N., aos concertos no S. Carlos, ando por aqui por esta cidade de Elvas...
E no mês de Janeiro em que estamos! No aniversário da morte de Sardinha!
Tudo o que fica o é em louvor da sua memória, pelo interesse que nos merece — tudo por bem se faz e se escreve, saibam outros, sem ser os do Chiado, que não é só por passatempo.
Elvas, 10 de Janeiro de 1943.
Azinhal Abelho
In «Acção», n.º 101, págs. 3/4, 25.03.1943