terça-feira, novembro 30, 2004

CARTA DO CANADÁ, por Fernanda Leitão

Senhor Presidente da República
Lamento dizer que pertenço ao número crescente de portugueses que, tendo-lhe dado ao menos o benefício da dúvida, estão desagradados com as últimas posições tomadas pelo Chefe do Estado. Sabendo embora que a democracia é um aprendizado moroso e difícil, por vezes consumindo uma vida inteira, não é fácil aceitar actos que mal assentam num cidadão com largos anos de luta contra uma ditadura.
Não me refiro à comédia rasca que decidiu oferecer ao país depois da fuga de Durão Barroso para Bruxelas, sob a forma dum (des)governo da firma P&P. Tendo por hábito colocar-me no lugar da pessoa que tomou uma decisão aparentemente extraordinária, numa tentativa de perceber, também nessa emergência perguntei a mim mesma o que faria eu se me chamasse Jorge, se fosse socialista e presidente da República. A resposta foi clara a ponto de me deixar desinteressada do que aconteceu depois: pois eu não convocava eleições antecipadas, como o Senhor Presidente não convocou, dava o governo à troupe em palco, como o Senhor deu, e deixava-os afundar completamente, até o PS ter tempo de lavar a cara e meter ao menos umas obras sumárias na arruinada casa. Era assim mesmo que eu fazia se me chamasse Jorge, se fosse socialista e PR.
Mas não sou Jorge, nem socialista, nem republicana. Os governos tenho-os por arranjos conjunturais, aceitando que umas vezes têm de ser à esquerda, outras à direita ou ao centro. Com os partidos extremistas fora de jogo, felizmente, os governos têm a pouca transcendência de uma administração de empresa. Quere-se obra feita e contas certas, e mais nada. Não perco tempo a dar aos governos mais importância do que esta.
Já assim não encaro a Chefia do Estado. Essa é que me preocupa e, na prosa presente, me ocupa. Porque a Chefia do Estado tem tudo a ver com a soberania do país – essa soberania que custou aos nossos antepassados muito sangue, suor e lágrimas, o que nos obriga a um grande escrúpulo com a manutenção da herança.
E é neste passo que eu entro a discordar frontalmente do Senhor Presidente depois de o ter ouvido afirmar que a Europa tem de ser uma federação de estados e que, por isso mesmo, todos temos de dar o Sim à Constituição Europeia a ser referendada na Primavera próxima.
O Dr. Jorge Sampaio, advogado, militante socialista e chefe de família, tem todo o direito de assim pensar. Mas porque decidiu ser presidente da República, e apesar da abstenção e dos votos noutro candidato, se afirmou “o presidente de todos os portugueses”, não pode fazer declarações destas ao país. Nada o autoriza a tal, muito menos o respeito que deve aos portugueses. Sabemos todos, na carne e na alma, quanto a República Portuguesa tem abusado da fazenda da Nação e da paciência do Povo, não sendo demasiado lembrar que foi durante o regime republicano que se abandonou um império ultramarino ao comunismo pró-soviético então vigente, seguido da rapina das multinacionais, em concubinato com os corruptos líderes das regiões, assim engrossando as legiões de famintos e miseráveis que se arrastam nas antigas possessões portuguesas ou nos guetos de imigrantes. À República devemos a circunstância de vivermos em ditadura desde 1910, após o banho de sangue em que os republicanos sepultaram uma Monarquia secular, isto é, duas ditaduras de partidos corruptos com uma ditadura tout court, mas nada curta de 48 anos, pelo meio. Porque tudo foi decidido e feito sem consultar a opinião do povo.
Não tenho notícia de algum Rei, de qualquer das monarquias da União Europeia, ter feito um discurso do trono, ou outra fala pública, declarando o sentido do voto no próximo referendo. Os Reis, pelo menos, sabem respeitar o povo e as regras do jogo.
Dizer Sim, cegamente, como o Senhor Presidente se afadiga em preconizar, é tão pouco inteligente e decente como, em 1986, nos Jerónimos, foi entregar o país à União Europeia, sem curar de saber se o povo queria, como fez um antecessor seu, por sinal o mesmo socialista que entregou o império. O necessário, o urgente, o digno, é explicar, dia e noite, em palavras claras, o que contém aquela Constituição de benéfico e de danoso para Portugal. Porque o que está em causa é aquela Constituição, não é a Europa em si mesma. À Europa pertencemos desde tempos imemoriais. Mas temos de saber se aquela Constituição nos convém e nos garante a soberania.
Até agora, o que o povo pôde perceber da União Europeia foi que acabou, em Portugal, com a agricultura e as pescas, nestas tendo ido ao apuro de nos tirar a zona marítima exclusiva, mandou milhões a jorros que, somadas as contas, não modernizaram nem incrementaram a indústria, mas deram origem a várias fortunas mal explicadas, ao mesmo tempo que abriu autoestradas que deixaram o interior mais interiorizado.
Temos todos assistido à invasão do capital estrangeiro e, principalmente, espanhol, sem que o desemprego tenha diminuído e as condições habitacionais, educacionais e de saúde do povo tenham melhorado, donde se pode concluir que foi investimento de puro saque da mão de obra. Nada impede, chegadas as coisas a este ponto, e com o aconselhado Sim do Senhor Presidente, que tenhamos as grandes empresas, principalmente as de pesca, nas mãos dos espanhóis, com frotas apetrechadas e já batidas em roubalheiras várias. No Canadá, por exemplo, tiveram de ser expulsos à ponta de espingarda e algemas – mas este é um país esquisito, uma monarquia parlamentar e senhora do seu nariz.
Este quadro é perigoso. O Senhor Presidente da República Portuguesa sabe muito bem, como qualquer um de nós, que em Portugal só o povo é fiel. As élites produzem sempre traidores. Nao é prudente dar a essas élites ensejo de, a exemplo do que já aconteceu no passado, haver um perdido, um infeliz, um desgraçado, que vá propor a União Ibérica ao Rei de Espanha. Que representaria, como se sabe, a dominação de Portugal. Não é aceitável proporcionar a essas élites que elementos seus, destituidos de carácter, vão aos bastidores de Bruxelas propor aos países ricos a transformação de Portugal numa vasta estância de casinos, bordéis, bares, estádios, hipódromos, com as máfias a controlar tudo, contra chorudas contas nos paraísos fiscais pela brilhante iniciativa, reduzindo os portugueses que não emigrarem a simples criados.
Resumindo, Senhor Presidente: foi muita pena ter-nos desrespeitado deste modo. O nosso voto no referendo pertence-nos, é parte da nossa liberdade. É secreto. Ele apenas servirá para avaliar uma Constituição e não para condenar a Europa. Ao Senhor Presidente cabe saber estar calado nesta matéria. Nós não somos mentecaptos, não precisamos de tutores nem de pisteiros.
Fernanda Leitão