CARTA DO CANADÁ, por Fernanda Leitão
A FIDELIDADE DO POVO
Os portugueses vão a caminho de celebrar 800 e muitos anos da sua soberania, graças à coragem despojada, audaciosa e rara dum príncipe, D. Afonso Henriques, que decidiu pôr termo ao jugo castelhano sobre a velha Lusitânia, antes optando por colocar o novo país ao serviço de Deus. Não degenerando quem sai aos seus, bem podemos dizer que o príncipe rebelde honrou a memória de seu tio-avô, São Bernardo, esse santo que, de facto, foi quem iniciou a construção da Europa, por muito que o negue e risque em constituições que o diabo dá e o diabo leva um Giscard d´Estaing ou outro criado de quarto da maçonaria. Um povo assim nascido fica marcado para sempre com a centelha do céu. Pode andar tresmalhado uns tempos, tresnoitado por ladaínhas de políticos manhosos que sempre deslumbram quem tem gerações de mau passadio atrás, mas acaba por acordar e ficar sempre do lado da Pátria que a Deus foi oferecida à nascença.
Traír, em Portugal, nunca o povo traíu. Isso de traição é para os das altas esferas que, por dinheiro ou bastardos interesses políticos internacionais, algumas vezes se desgraçaram, e nos envergonharam, indo pela calada oferecer o país à Espanha ou aos impérios que trabaham a petróleo, como os fogareiros antigos, e que por isso engasgam e depressa rebentam. Perdidos, desgraçados, traidores, nunca entre o povo os houve.
O homem do povo, mesmo quando emigra e fica longe muitos anos, leva consigo os valores de Pátria, neles incluídos os da educação religiosa, que guarda sem desfalecimento e transmite às gerações que o sucedem. São estes os verdadeiros batedores culturais de Portugal, na maior parte dos casos ignorados, ou mesmo espezinhados, por uns intelectuais de torna-viagem que, por vaidade e cupidez, se vendem por qualquer prato de lentilhas e, por isso mesmo, são impingidos às comunidades emigrantes através dos consulados, das embaixadas, dos leitorados, dos serviços de comércio externo.
Quantas vezes, nas mãos destes mercenários, a Língua e a Cultura não se transformam num farrapo, onde limpam as mãos, ou num trampolim de circo, donde saltam de poleiro em poleiro.
Estas reflexões assaltaram-me de forma acutilante ao assistir ao 18º Ciclo de Cultura Açoriana que, recentemente, teve lugar no belíssimo salão da Casa da Madeira, dirigida por pessoas que puseram o maior brio e gosto nesta jornada do espírito. Dezoito anos seguidos a organizar e realizar um ciclo de cultura por onde têm passado larguíssimas dezenas de cientistas, pensadores, escritores, artistas, artesãos, autarcas, jornalistas, homens de boa vontade que dão o melhor de si às suas Ilhas, e realizá-lo com orçamentos frugais, às vezes quase ridículos, porque orçamentos largos são em geral para as manifestações partidárias encapotadas debaixo do manto cultural estendido pelos tais intelectuais de serviço à situação política, realizar eventos nestas circunstâncias é uma tarefa dolorosa e arriscada como não se calcula. E no entanto, este Ciclo de Cultura Açoriana, de Toronto, tem sido obra de um português, Manuel Oliveira Neto, o director-proprietário do jornal on line Portugal Ilustrado. É ele um superhomem? É ele milionário? É ele um freguês da gamela partidária? Nada disso. É, apenas e só, um português que, emigrado, longe da Pátria há muitos anos, guardou consigo os valores da terra e ao transmiti-los de forma genuína, demonstra que só fala do que sabe. Um açoriano, quando emigra, leva consigo uma fita de nastro, enroladinha, com o tamanho da imagem do Senhor Santo Cristo, que coloca por dentro da roupa, junto ao coração. E não se envergonha de o dizer. Pouco depois de chegar, entra para a irmandade do Espírito Santo, faz os bodos de leite, faz os desfiles do Pentecostes, com as Coroas quinhentistas, distribui as Sopas a centenas de pessoas. E tem o maior orgulho em fazê-lo.
Açorianos, continentais, madeirenses, que trabalham arduamente para sustentar a família, e não enjeitam mais trabalho nas horas vagas, e aos fins de semana, para celebrarem o Senhor da Pedra, o Senhor Bom Jesus, Santa Maria dos Anjos, Nossa Senhora do Monte, Nossa Senhora de Fátima, com procissões solenes, que por vezes de tão grandes obrigam a cortar ruas em Toronto e outras cidades, e à presença da polícia motorizada, são portugueses que têm dentro de si um grande sentimento de fidelidade. Que não sabem ser portugueses sem serem fiéis à herança espiritual e cívica que receberam.
Com estes portugueses, que são povo, a Pátria pode contar. Os mesmos que estão no interior do país. Os mesmos que vivem dificuldades imensas nos bairros das grandes cidades portuguesas. Todos eles acabarão por ser o trigo a que anda misturado um certo joio que não resistirá à peneira do tempo.
Fernanda Leitão
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