ELVAS — QUINTA DO BISPO
Elvas, oh! Elvas!
Badajoz à vista...
E a paisagem desenrola-se numa melancolia latina, com manchas de tonalidades secas, côr de cinza, próprias deste mês de Agosto.
Quem avistar Elvas avista Badajoz; Olivença, nossa irmã de sangue a dizer-nos adeus da outra margem do Guadiana; Campo Maior, a terra mais quente de Portugal; Vila Boim, a terra boa onde nada é ruim, e outras urbes secundária do Alto Alentejo a branquejarem na tristeza do Suão.
Elvas, chave amuralhada do Reino, é ponto de partida privilegiado. Três estradas importantes, saindo de três portas armoriadas, portas seculares, talhadas em blocos de pedra, que são a cédula pessoal desta cidadinha que apetece trazer ao colo.
Cada cidade tem uma ou meia dúzia de imagens que fazem o seu ex-libris, que a diferenciam, que nos acodem à memória mal a relembramos. Elvas, além da latinidade, que a torna irmã-gémea de Évora, de Cáceres, de Toledo e de Beja, tem as ruas estreitas, perfumadas, ruas que ainda hoje se cobrem de espadana e rosmaninho na procissão de S. Jorge, ruas que nos evocam a contenda do Hissope, por onde decerto passaram os partidários do Deão e do Senhor Bispo. Mais do que elas só as muralhas, nobres castelãs cobertas de verduras, que pendem como enfeites sumptuosos. Pelas portas já citadas, que em tempos idos estavam vedadas às arremetidas belicosas dos inimigos, deslizam prosaicamente as camionetas ajoujadas de passageiros utilitários. De vez em quando um turista, mas só um. E esta cidade bela merecia também a sua atenção. A paragem é sempre num café, debaixo duma arcaria, café que bem podia ser típico e ter outro rótulo. Baptizaram-no de Internacional só porque ali estacionam às vezes gentes de Espanha. Peninsular é que seria o verdadeiro e mais condizente apelido. As muralhas, íamos nós dizendo, cercam Elvas e o Aqueduto da Amoreira leva-lhe a água através da arcaria monumental.
Mas quem vai a Elvas tem de ir à Piedade, para cumprir o programa da cantiga popular, mais um cartaz turístico do que desabafo de descante. De facto, aquilo que é a prenda mais bonita da cidade.
E se forem, como eu fui agora, à Piedade, peçam, como eu pedi, alguém que os leve à Quinta do Bispo.
Eu não sei se este nome está popularizado entre os que tratam de escritores em Portugal. É possível que sim. Já tantos têm falado dela!
Quinta do Bispo, como S. Pedro de Muel, S. Miguel de Seide, Vale de Lobos, Belinho, Torre de Anto, são paragens que estão ligadas à literatura portuguesa.
Quinta do Bispo foi moradia de mestre António Sardinha, «aquele bom português» que segundo a lápida do aqueduto «amou e muito serviu» esta cidade.
Entrámos silenciosamente. Aquela voz mansa, companheira do mestre durante a sua vida de casado, acompanhou-nos na peregrinação.
O escritório em que o poeta da Epopeia da Planície trabalhava está ainda na mesma.
Dir-se-ia que o tempo, desde 1925 para cá, desde esse Janeiro trágico, nunca mais andou. Os mesmos retratos, os mesmos livros, a última carta escrita ao Troveiro amigo da Praia de Muel, a última página do livro que não chega nunca mais a ser lido até ao fim, tudo, tudo permanece saudosamente estático, numa suspensão que não sabemos se inda é vida, se é já morte. O que se conclui facilmente é que esta oficina nunca mais serviu a ninguém. A tarde tomba enquanto nós falamos. As alas de buxo e as folhas dos lilazes e glicínias agitam-se através dos vidros. E voltamos atrás, folheamos datas, recordações desse 1925, quando Portugal estava à beira do abismo. Voltamos à época de inquietação que deu motivo à brilhante cruzada do Integralismo Lusitano.
Os frisos dos soldados ali estão todos alinhados em efígie: Almeida Braga, Hipólito, Pequito, Alberto Monsaraz, Lopes Vieira, Alexandre Cabeças e muitos mais. Não faltam até grandes de Espanha. Se nos for permitido ler os frontespícios dos livros das estantes, lá vemos o testemunho da época nas dedicatórias de inúmeras admirações de Eugénio de Castro, nos Oaristos, nas Cartas de Torna Viagem, com uma consagrada a Elvas, até Manuel Ribeiro, o mais novo na chegada, com a sua conversão religiosa que deu brado. Mas Sardinha esteve exilado. Quase que íamos a escrever — esse bendito exílio. De facto, só a dor permite a criação. Do pão do exílio trouxe o escritor a sua lusitanidade mais requintada, mais aguçada. Foi da deambulação forçada por terras de Espanha que nasceu a Aliança Peninsular, tão mal compreendida nesse tempo, e de que um discípulo seu, o embaixador Pedro Teotónio Pereira, está seguindo a trilhagem deixada pelo mestre.
Sardinha chorou lágrimas de sal e sangue na Casa del Greco. Sim, chorou, e dessas lágrimas nasceu o cântico lírico de Na Côrte da Saudade. Ninguém, como o mestre, soube evocar Toledo. «É cada pedra uma alma e cada alma um segredo...»
Em poucos escritores há uma obra tão unitária como em Sardinha. Veja-se o início, na dissertação do Valor da Raça, até Ao Princípio era o Verbo, até aos seus poemas da Chuva da Tarde, da Epopeia da Planície ou do Roubo da Europa. Há sempre a mesma voz cristã, o mesmo saudosismo das eras do apogeu, confiando cegamente nos destinos da Pátria.
A casa dum intelectual, dum artista criador, poeta, músico ou pintor, é, tanto mais do que a sua obra, a síntese da sua alma, da sua sinceridade. O cenário da nossa torre de marfim, que às vezes é perfeita torre de Babel, é tão necessário para o espírito como o pão para a boca. A casa de António Sardinha, aqui, na Quinta do Bispo, era o complemento da sua obra.
Cá estão os retratos de Carlota Joaquina e de D. João VI, reabilitados por ele, cá se encontram os tapetes de Arraiolos, os pucarinhos de Estremoz, os cobres portugueses, as jarras, os móveis, os panos, tudo a respirar lusitaníssimo bom gosto.
Nem outra coisa era de esperar do maioral e mentor do Integralismo Lusitano.
Afirmou-me a Esposa do Mestre que aquela Casa era o ideal para ele. Só de vez em quando lhe dizia: precisava que ela tivesse uma porta para o Chiado, por causa dos amigos. Sim só por causa dos amigos, porque de resto a paisagem, o ambiente de cristandade franciscana, que por ali paira, deviam satisfazer-lhe as aspirações espirituais necessárias às suas tranquilas meditações.
Foi-lhe possível então extrair das coisas a lição de sensibilidade, profunda, imprescindível. Dessa forma nasceu o mestre que dissertava sobre a linguagem das pedras do aqueduto de Amoreira; não só pela cultura mas também por isso, pela sua emoção histórica, a sua capacidade conseguiu fazer nascer luz sobre factos que pareciam assentes. Assim a personalidade poética de Junqueiro, a preponderância intelectual de Teófilo Braga, o vulto de Gomes Freire e, mais do que isso, a resposta a Afonso Costa, quando esse enclausurado no Forte de N.S.ª da Graça pretendeu conhecer a História de Elvas, tudo Mestre Sardinha analisou sob um critério que revelava os pés de barro dos ídolos endeusados do Liberalismo.
António Sardinha foi bom português, como dizem as letras da lápida do Aqueduto de Elvas, como dizem os seus poemas, os seus ensaios e como diz esta sua casa, lar verdadeiro, exemplo da família portuguesa.
Esta Elvas, senhores! Esta Elvas, depois de tudo, desta paisagem, deste casario, desta melancolia, desta latinidade castiça, depois de tudo, ainda tem a mais a casa onde António Sardinha viveu, e que é uma grande lição.
Oh! Portugueses! Oh! português que foste aprender a Belinho e em S. Miguel de Seide o que era e como era a província do Minho; tu, que vais a S. Pedro de Muel ouvir as palestras dos búzios de Afonso Lopes Vieira sobre o mar das descobertas e sobre o pinhal do Rei, vem, vem também aqui ouvir o mestre da Epopeia da Planície. Ele ainda está ali vivo, na sua mesa de trabalho a escrever a sua última carta. Ana Júlia, a excelente chaveira desta pousada «que tem um ar de igreja», está lá, sempre vigilante. Enchem-se-lhe os olhos de água quando perpassam nas suas falas as sombras históricas que ali moram. Oh! a jornada de Monsanto! O Natal do exílio em Badajoz! Os jogos florais salamantinos! Enevoa-se-lhe o parecer, mas depois, com gentileza fidalga, aos fiéis à memória do Mestre, os portões da Quinta do Bispo abrem-se sempre. E merece a pena. A emoção é tão grande!
Azinhal Abelho
In «Acção», n.º 38, pág. 5, 08.01.1942
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