A IDEIA NOVA
Há impulsos e sentimentos humanos que nalgumas pessoas agem com mais intensidade e maior imposição. Entre eles, podemos assinalar os seguintes: o sentimento de solidariedade; o impulso para a criação activa; o sentimento da encarnação, do enraizamento e da concreção, e nele a consciência e a apologia do corpo do tempo em que se vive, da terra própria; a dupla atracção: permanência, duração e fidelidade às origens — a aventura geradora, renovação, avanço para o futuro; o gosto pelos ideais alevantados, onde o homem se espiritualiza, comunga com a Beleza e é atraído pela Verdade.
Foi principalmente a intervenção dominante destes sentimentos e sua reunião que constituíram a fonte para o novo rio: a mentalidade nova.
Deve ficar esclarecido, desde já, que esta mentalidade não é inteiramente original, desligada de antecedentes, mas, antes pelo contrário, tem (quanto a algumas das suas linhas de força ou elementos componentes) vários indivíduos, grupos, doutrinas, que a antecedem no mesmo sentido de afirmações e crenças. A diferença é que a nova mentalidade é nova por reunir todas essas tendências e pelo modo com que as reúne. Realmente, a nova ideia pode contar entre os seus precursores ou fautores agentes tão diversos como Platão, Aristóteles, os estóicos, Roma, os Germânicos, o Cristianismo, Santo Agostinho, S. Tomás de Aquino, Dante, Castiglione, Maquiavel, Giambattista Vico, Fichte, Goethe, Schiller, Hegel, Schlegel, Otão III, o Papa S. Silvestre, Bismarck, Frederico, o Grande, o Socialismo, a Revolta Ideal, Alfredo Oriani, Georges Sorel, etc. Mas só a nova ideia, reclamando uma nova ordem, evidencia a uma nova luz o valor daquelas tendências e lhes dá uma significação real, ao inseri-las num corpo harmónico, lógico e vivificante.
Vejamos, pois, como certas premissas e certos propulsores conduziram a determinadas afirmações. Comecemos pelo sentimento da solidariedade. Por ele, as pessoas buscam a camaradagem, a amizade e a colaboração; por ele desprezam o egoísmo; por ele amam, como que naturalmente, como que instintivamente, as sociedades em que se criaram e desenvolveram. O sentimento da solidariedade é um dos motivos de respeito e amor às sociedades que, sucessivamente englobadas umas nas outras, se chamam Família, Nação, Continental Comunidade Geográfico-Cultural (por exemplo: Europa). O sentimento da solidariedade transmite, ainda o valor da unidade superior à multiplicidade e à dispersão; e revela o valor da História que, embora criando e renovando, também conserva unidas e coesas as sucessões através dos tempos, além de esclarecer e criar comunidades e unidades. Realmente, é um sentimento de solidariedade sentir que as gerações se encadeiam umas nas outras, intimamente; que nós estamos ligados aos nossos ancestrais e aos nossos descendentes e que somos, na carne e no espírito, produtos dos primeiros, como os segundos serão produtos nossos: que uma enraizadora força nos intensifica e uma purificadora emoção nos invade, quando damos por nós reunidos a outros e sobretudo na medida em que os outros são também nós, têm algo de comum connosco.
Muito aparentado a este, existe outro sentimento: o da encarnação e concreção. Por ele nos sentimos ligados ao limitado, à forma, ao terrenal, à parcela, ao momento, à natureza. E, ao mesmo tempo, por ele nos sentimos integrados, nos sentimos parcela reunida a outras, tonalizados por elas, inseridos num processo. Quer nos observem como sujeito, como actuante e transformador — é o primeiro caso —, quer nos observem como objecto — e é o segundo caso —, há sempre a necessidade do limitado, da forma, do terrenal, da natureza. Quando sobre tudo isto agimos para o transformarmos, aperfeiçoando-o, todo o limite, toda a forma, toda a natureza são ultrapassados pelo constante aperfeiçoamento, e eles são potencializados constantemente a sucessivos novos graus de si próprios. Também nós possuímos a nossa verdadeira realidade nesta concreção: ligamo-nos ao limitado e à natureza para os ultrapassar e fazer com que eles se ultrapassem; somos sujeito e objecto, em sucessivos termos ascendentes. Sentimos o corpo, consciencializamo-lo, pensamo-lo; e sentimos que ele é uma realidade modificável, talvez um objecto, um meio, um instrumento e um material: mas sentimos também que não devemos desprezá-lo, que não podemos anulá-lo. Sentimos, quiçá, que pensamos com o nosso corpo. Aqui temos uma concreção: o corpo. Outra é a terra, continuação do corpo, ainda. Sentimos, com entrada por todos os sentidos, com moldagens e antenas e adequações geradas por memórias físicas, sentimos a atracção da terra onde crescemos de corpo e de espírito, a atracção do sangue a que pertencemos, da família onde nos formamos, daquilo onde o eu é maior por ser nós. Eis, portanto, outra concreção: a terra, desde a aldeia ou cidade, até à província, ao país, à pátria. E outras concreções ainda: a família, a raça. E o tempo. Sentimo-nos filhos do tempo em que vivemos, filhos e pais também. Sentimos que respiramos nele o seu ar, que ele nos fornece ideias, comportamentos, gostos, sentimentos; que ele nos dá acontecimentos e proibições e acicates, que nos martela com certas coisas e nos oculta outras. Sentimos que é dentre tudo isto que nos temos de mover, que é sobre tudo isto que temos de agir, que nós e o nosso tempo estamos ligados quase como irmãos siameses.
E falemos agora do impulso para a criação activa. O Homem sente dentro de si o desejo de prolongar-se e de ser demiurgo: ter o poder, criar, ter o poder de criar — aqui está uma exigência tipicamente humana. Avaliar-se-á, pois, a qualidade humana, a fidelidade às características humanas, pelo grau de vontade criadora, de domínio sobre as coisas e sobre a estaticizante coisificação, pelo grau de acção, com a qual objectivamos, transformamos, movemos e orientamos, Mas a acção é, por natureza, contínua, porque, de contrário, passaria a acto, ou melhor, a objecto. A acção é movimento. O constante impulso humano de criar, de agir, é impulso para constante movimento. Por ele, assim, cada momento da acção é ultrapassado por um novo momento. Deste impulso resultou a consciência de que ser humano é agir constantemente, é criar, é ultrapassar a estaticidade, a conservação que não seja processo, é ultrapassar cada momento.
Com os sentimentos e impulsos já referidos relaciona-se essa dupla atracção da permanência e fidelidade às origens e da renovação e avanço ao futuro. Ambas as forças são profundamente humanas: uma quer durar, ser eterna; a outra quer criar, conhecer e englobar de novo. A primeira força relaciona-se mais com a unidade e a solidariedade: a segunda com a acção. A primeira liga-se mais ao passado, a segunda ao futuro. Uma significa paz, a outra significa luta; uma diz lar, outra diz viagem. Uma ou outra predomina, geralmente, em cada pessoa; e às vezes a tal ponto que chega a ocultar a sua complementar. Mas as duas forças são profundamente humanas, e à definição do humano pertence a igual presença de ambas elas. Pela primeira, amamos o que nos precedeu através do tempo, na casa, na Família, na região, na Pátria, na civilização a que pertencemos; por ela, amamos o que a infância nos deu, o que nos deu a adolescência; por ela, amamos o que se torna coeso e uno e duradoiro, amamos as paredes de granito que nos defendem das intempéries, a lavoura onde nos continuamos com a nossa marca, a propriedade onde nos perpetuamos com a nossa posse, os encadeamentos criados pela Natureza ou pela História, como a Família, a Província, a Nação, etc. Mas a segunda força nos impede que nos prenda, cada forma que nos feche, cada satisfação onde caiamos em rotina e fiquemos parados como coisas. Esta segunda força dá o desejo de perpétua juventude, a ânsia de descoberta, a exigência de mais além.
O gosto pelos ideais alevantados ergue o homem do domínio da Natureza bruta, liberta-o da escravidão aos instintos e faz com que ele não se reduza à satisfação das necessidades materiais, antes valorize, sobretudo, aquilo onde se reflecte o Bem, a Beleza e a Verdade. Esse gosto é espiritualidade, é a noção de que o Bem, a Beleza e a Verdade estão na luta que travamos para emergir da bruta lei da necessidade, para nos não submetermos à matéria, para nos negarmos ao egoísmo. Esse gosto é a noção de que podemos ser melhores e isso consiste em nos darmos ao que é melhor. Sabemos que a procura e a afirmação destas coisas aparecem em cada um em grau diferente, ficamos a ter consciência de um gradualismo, de uma hierarquia segundo essa procura e afirmação. Os que vão à frente são personalidade excepcionais. Os que mais lutam, que mais renunciam à egoísta satisfação, que correm mais riscos e vencem mais obstáculos — são os heróis. Deste gradualismo resulta um sentido de Justiça.
O que chamamos aqui sentimentos é também pensamento. Mas, seja como for, estes sentimentos articulam-se entre si para constituir um pensamento novo. A solidariedade e a unidade ficam livres de qualquer abstracção, por obra e graça da encarnação, da concreção e do enraizamento; e assim se exprimem em Família, Nação, Continente, etc. E estas realidades concretas ficam livres do seu egoísmo, por obra do próprio sentimento de unidade e do idealismo. É ainda a unidade e o idealismo que requerem uma autoridade que lhes seja garante. E é a solidariedade junta com a encarnação que impede a perda num futurismo desenraizado, assim como o idealismo e o impulso para a criação impedem a perda num passadismo mineralizador ou dissolvente. É também a reunião de encarnação e idealismo, e ainda a de unidade e de activismo, que dão o verdadeiro e total sentido de Justiça.
Da colaboração destes sentimentos surgiu, pois a mentalidade nova que poderia apresentar assim alguns tópicos da Ordem Nova que requer:
Cada um de nós vale na medida em que cria, em que constrói a realização dos valores mais altos; vale na medida em que se dá aos outros, ao que o ultrapassa; vale na medida em que se integra nas realidades que exprimem a unidade e a actuam. As famílias são colaborantes na Nação, como as Nações na Europa, como a Europa com outros continentes no Mundo. E, quer sejam indivíduos quer sociedades, requerem-se personalidades de excepção, o que não significa acção contra os demais ou alheada deles, mas sim a favor dos demais e potencializando-os, conduzindo-os, ajudando-os a realizar-se. A renúncia, a solidariedade, a heroicidade, o aperfeiçoamento constante são virtudes fundamentais. A Justiça Social ordena um gradualismo, uma sobrestimação do espírito, uma satisfação às necessidades materiais e espirituais do homem concreto, uma extensão destes bens a toda a comunidade, a toda a gente, uma obediência à unidade. Não se pode desprezar o contributo do passado, o legado da História, o imperativo dos mortos, nem furtarmo-nos às seduções do futuro, à ordem de constante renovação, actualização, empreendimento criador.
Goulart Nogueira
(publicado em Tempo Presente, n.º 8, págs. 3 a 7, Dezembro de 1959,e de novo em Agora, n.º 335, pág. 9, 16.12.1967)
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