segunda-feira, dezembro 27, 2004

ENCONTRO COM SALAZAR

Encontro uma pequena pétala de rosa entre as páginas dum Diário duma rapariguinha provinciana. Que descaminhos levou o meu Diário? Estava sempre escrito a tinta verde. Infantilmente, dizia-me que era uma esperança. Assinalei aquele dia de Abril de 1938, quando meu Pai me disse que íamos à Casa de Bélinho visitar o Poeta? Não era a primeira vez, mas aquela visita possuía especial significado, porque António Correia de Oliveira ia ler-nos o seu "Auto das Oferendas", que eu declamaria na festa do 1.º de Maio, a grande Festa do Trabalho, diante duma tribuna onde, entre as Autoridades convidadas, estaria Salazar. Aliás, todo o Auto lhe era dedicado.
Eu procuro descrever com a simplicidade e inexperiência daquele tempo tão cheio de entusiasmo, tão romanticamente vivido. A grande festa do 1.º de Maio de 38, o extraordinário Cortejo do Trabalho, o belo Auto do Poeta, não puderam ter a presença de Salazar. Eu senti, realmente, uma frustração. — «Eh, lá da tribuna, ó gente/ Dizei-me se está presente/ Aquele homem — Salazar/ Quero vê-lo ao sol de Deus,/ Deitar meus olhos aos seus/ Qual se deita um barco ao mar!».
A jovem que eu era, vestida com o traje de noiva de Viana, naquela tarde de Sol de Deus, não pôde, então, deitar os olhos a esse homem tão discutido e admirado, que tanto desejava ver.
« — Mas presença é uma aparência,/ Porque não anda em ausência/ Quem se traz no coração». Triste consolo! Havia, na ausência, um amargo travo de desengano. E eu também sofria com a cidade. Não fora António Ferro guardar a lembrança da beleza do espectáculo, teria o meu sonho morrido nessa tarde. Mas António Ferro não desistiu de apresentar o espectáculo em Lisboa, no Salão do antigo S.N.I., para que Salazar, enfim, o visse. E uma alegre caravana de moças vianesas partiu, um dia, da sua cidadezinha provinciana, a caminho da Capital. E éramos todas lindas — porque jovens e deslumbradas, «frescas Marias Lusitanas», como o Poeta as sonhou.
Nas malas, os ricos e variados trajes das camponesas do Distrito de Viana, da montanha até ao mar. Da montanha, a angélica Flávia, melgacense; quando envergasse o seu traje de Castreja, transportaria nos braços o peludo cachorrinho, representante, de boa escolha, do valente e fiel cão pastor de Castro Laboreiro. Igual tinha sido entregue em Viana ao Dr. Costa Leite (Lumbralles). E dar-lhe um nome? Eu lembrei o de «Economia». Aprovado por unanimidade. Em todo o meu caminho, partilhando, embora, do entusiasmo reinante, eu estava toda virada para uma preocupação que se avolumava, um receio de não cumprir como desejava. Por isso, a minha memória enchia-se de versos: — «Ó Lisboa, eu sou o Minho/ Que se meteu a caminho/ Na estrada de Salazar/ E que vos traz, Homens Bons, para vos dar». «Sempre fresca e rapariga/ Sou a raça nobre, antiga,/ A Maria Lusitana...» — «Eh, gente do varandim!/ Eh, lá, olhai para mim/ Que sou Maio. Eu Maio sou/ Vestida de Lavadeira,/ Qual a terra, a vez primeira/ Que de rosas se enfeitou». Assim me movia como sonâmbula, até à chegada. Só despertei na altura em que Francisco Ribeiro (Ribeirinho), indicava as entradas no pequeno palco, compunha a moldura das ofertantes, colocando-as pela ordem da entrega dos seus dons, seguindo o poema: O linho e a lã, o vinho e o pão, o bordado e a renda, o barco... «E pombas, lembrando agora/ As naves que céus em fora/ Hão-de ir à Índia dos astros». Assim eu ia apresentando, ladeada por duas figuras (uma das quais minha irmã) que apoiavam o longo poema com quadras, no inconfundível estilo do Poeta. Na noite da festa, Salazar estava finalmente presente, estava frente a mim, a dois passos. Assim, deitando meus olhos aos seus, «qual se deita um barco ao mar», eu pude dizer com maior entusiasmo: — «Ou vida, em tal estatura/ Que passa de criatura/ À força de ser Nação». Assim, Ele ali estava, entre os que eram o Estado e nós que éramos Povo — «A lenha do lume novo/ Nas raízes do passado». Desciam os degraus do palco as jovens camponesas, hieráticas, cintilantes de vidrilhos de luar e oiros antigos, ou desembaraçadas nos seus polícromos trajes de trabalho, graciosas nos seus chapéus de palha ou bioco montanhês, e depunham as ofertas aos pés dos Homens Bons. Não temesse Lisboa, de nós, nenhum mal. Porque, «Ela por nós, nós por ela,/ — Foram sempre a serra e a vela/ Quem deu a alma a Portugal». Salazar tinha lágrimas nos olhos e apertava nervosamente as luvas brancas que poisara no regaço. Estava imensamente comovido e deslumbrado pelo ineditismo do espectáculo, a vibração que se sentia no ar. — «Agora adeus! Que Deus fique/ Sobre Vós, como em Ourique,/ Cruz de estrela em que ficou./ Amigas, vamos embora,/ Cantando caminho fora,/ Pois Maio sempre cantou». O Auto findava ali. O resto do espectáculo continuava. No intervalo, fui, com o Poeta, à presença de Salazar. Timidamente lhe agradeci. Depois, alguém teve a boa ideia de instalar aquele colorido grupo de jovens nos degraus do palco. Fiquei quase aos pés de Salazar e reparei que abanava, com o programa, as pobres pombas de bico aberto, acaloradas, porventura sedentas. Discretamente, com um sinal, mandou que cuidassem delas, como do pequenino cão. — «Já tem nome?» Perguntou-me. Respondi-lhe que sim, que eu lhe tinha dado o nome de «Economia». Com grande espanto meu, sorriu-se abertamente, riu-se, quase, e assinalou o facto àqueles que o ladeavam. Principiou, então, a fazer pequenas perguntas alegres e vivas, por vezes propositadamente embaraçantes. A uma, e outra, e outra; quebrada a timidez e afastado o protocolo, todas respondiam como sabiam. A vivacidade e alegria vianesa criavam um ambiente especial. Eu é que lhe estava mais perto e saía da crisálida do temor. — «Como se faz a broa, como esta que me deram?» Valeu-me a minha infância de brincar no forno de um velho padeiro, a ver amassar e cozer. Riu-se à descrição da benzidela — «São Clemente te acrescente, São Mamede te levede». Passou, no palco, do Ribatejo bem batido; passou o bracarense Rei do Cavaquinho, o fado na voz de Ercília Costa. Passou a alegria e o talento de Beatriz Costa vestindo um traje sofisticado de vianesa, em cetim verde, saia de balão, chinelas prateadas. Alguém resolveu improvisar um vira minhoto para fecho do espectáculo. O par escolhido foi o Rei do Cavaquinho e eu. Nunca mais esquecerei esse vira. Quando regressei, disse-me Salazar: — «Não sabia que era mentirosa». — Porquê, Excelência? — «Porque disse há pouco que tinha chinelinhas prateadas e as suas chinelinhas são pretas. Prateadas são as da Senhora D. Beatriz Costa.» Lembrou Salazar, simultaneamente, um passo do poema: — Chinelinhas prateadas / — Que são as ondas bailadas...», e apontou as minhas chinelas (tradicionalmente pretas) e as chinelinhas prateadas de Beatriz.
Voltámos a Viana. Dias depois, aparecia no Século Ilustrado um retrato de Salazar com as suas duas pupilas e o seu cão «Dão». Creio que fiquei triste. O Século era de 21. A 24, escrevia-me Salazar.

«24/5/38.
Exma. Senhora.
Deve ter visto pelo Século de 21 que o cão mudou de nome. Custava muito dizer «Economia» e passou por isso a chamar-se «Dão». Ficou com este nome por me dizerem que o outro cachorrinho entregue em Viana ao Sr. Ministro do Comércio se chamava «Minho». Teremos assim os dois cães com que tiveram a gentileza de presentear-me portadores dos nomes dos rios que banham a província de V. Exa. e a minha. Peço no entanto a V. Exa. e suas gentis companheiras desculpa da troca. Com os melhores agradecimentos, de V. Exa. adm. mt.º grt.
A. Oliveira Salazar
»

Um encontro. Uma pétala de flor nas páginas dum Diário de rapariga. E um pobre soneto —
«Tinhas de ser qual és..........
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E, ao contemplar-te, eu fico na incerteza
Se te admiro como portuguesa
Se te adoro o teu perfil como mulher
».

Maria Manuela Couto Viana