domingo, dezembro 26, 2004

MEMÓRIA DE ANTÓNIO SARDINHA

I
Há mortos mais vivos do que certos vivos. Como há vivos mais mortos do que certos mortos. Ninguém, ao que suponho, ignora isto. Mas torna-se especialmente oportuno recordá-lo em determinados momentos da história. Da história dos Povos — e da história das Ideias.
No período decorrido entre as duas primeiras grandes guerras deste Século — creio que por 1930 ou 31, — o escritor francês Henrique de Montherlant, conhecido até aí como barrèsiano fervoroso, sentiu a necessidade de publicamente apregoar, com certo ruído, a sua independência do mestre e escreveu um artigo de escândalo com o título de Barrès s`eloigne. Procurava denunciar a caducidade da influência do autor de Les déracinés e de Colette Baudoche — quer no aspecto ideológico, quer no aspecto formal, de estilo. Alguns anos mais tarde, outro literato parisiense, cujo nome não me ocorre, veio apresentar um depoimento de sentido contrário, ao qual deu significativa epígrafe: Barrès se rapproche... Teriam ambos razão, cada um no seu momento ? Duvido. E duvido, porque os argumentos de ambos ressentiam-se da posição política tomada, em ocasiões diversas, perante os problemas nevrálgicos da hora.
O que, todavia, um e outro provavam — conscientemente ou não — era a actualidade de Barrès, a sobrevivência de Barrès, bastantes anos após a sua morte, já que nele continuavam a ver o chefe presente, a atacar ou a exaltar ... E parece-me muito presumível que as novas provações sofridas pela França venham trazer outra vez Barrès a superfície — com o seu nacionalismo altivo e sentimental, a sua intuição dos mitos eficientes, o tom ao mesmo tempo febril e melancólico dos seus apelos à reacção francesa... Parece-me muito presumível que Barrès volte à superfície. Desde já verifiquei, numa recente passagem por Paris, que as suas obras surgem, como expressiva insinuação: nos mostruários da maioria dos livreiros...
Eis um dos tais mortos bem mais vivos que certos vivos. Um dos tais mortos cujo destino é prosseguir no combate, pela semente lançada nos domínios do Espírito — quando há muito o seu corpo descansa. E porquê? Porque das páginas que deixaram uma chama animadora e fecunda se ergue ainda — tem ainda o condão de acordar novos ardores e de sugerir novas esperanças. Porque escreveram para dar testemunho de qualquer coisa que os ultrapassava — no espaço e no tempo.
O mesmo sucede, entre nós e até fora das nossas fronteiras, com António Sardinha. Existirá por aí, mesmo no meio dos vivos, escritor tão vivo?

II
Mais um aniversario daquela fria manhã de Janeiro em que fui informado de haver falecido António Sardinha. Lembro-me bem da impressão que a notícia me causou. Ainda pouco antes — apenas duas semanas! —nos tínhamos encontrado em Lisboa, nas vésperas do Natal. António Sardinha ia passar a festa da Família com os seus, a Elvas; eu, dispunha-me a partir para Coimbra. Conversámos largamente, e ouvi-lhe palavras de desalento e de cólera perante o espectáculo miserável que oferecia então a vida pública portuguesa. No final, porém, um brado de esperança — que nascia da firme resolução de voltar de novo à batalha. Nunca esmorecia, na alma do Paladino, esse impulso de fé, que não só lhe parecia capaz de «mover montanhas» — mas também de salvar as Pátrias em crise ... O seu programa de acção era vasto e ardente. Separámo-nos com a ideia de tornar a juntar-nos no mês seguinte. Mal sabia eu que lhe apertava a mão pela ultima vez e que não voltaria a encontrá-lo neste mundo!
Recebi, dias depois, um livro seu e uma grande carta. Quando pensava em responder-lhe, chegou a nova brusca do seu desaparecimento. Lembro-me bem... E hoje, como nessa fria manha de 1925, sinto-lhe a falta, deploro a sorte que no-lo roubou, evoco, com amargura, o vulto do apóstolo e do combatente da frente da ofensiva resgatadora: o mais vibrante, o mais entusiasta, o mais confiante de todos!
«Portugal teve em António Sardinha o seu profeta dos tempos modernos» — escreveu um dia Pedro Teotónio Pereira. Esta frase veio a adquirir, no curso da Revolução Nacional, dita por um dos seus melhores realizadores, sentido profundamente simbólico e verdadeiro.
Para mim, com efeito, a grande Revolução portuguesa da nossa época foi a geração de António Sardinha quem a preparou e a formulou, nas suas directrizes fundamentais. Revolução completa e salutar, portadora duma luz nova. Sob este aspecto, Sardinha foi um perfeito revolucionário, o revolucionário da Contra-Revolução, — dessa Contra-Revolução que de longe vinha, e acompanhava, passo a passo, a calamitosa Revolução individualista do século XIX, como a justiça a perseguir o crime. Já em 1823, Faustino José da Madre de Deus, no prólogo do seu comentário à Constituição de 22, exclamava: — «Se os portugueses algum dia tornarem a tragar o veneno das doutrinas liberais, não será por falta do necessário antídoto: será por não lho terem querido ou sabido ministrar»... Tantas vozes se ergueram, desde os fins do Século XVIII, a gritar à Nação os perigos que a ameaçavam, os abismos que a esperavam ao fundo do declive! Mas esses lúcidos profetas não conseguiram impor-se. Os mitos dominavam. Os mitos tinham sede de sangue, tanto quanto as almas tinham sede de quimeras. E as quimeras revolveram-se, como era inevitável, em sangue — e em ruínas.
Poderosos mitos! Ao seu apelo, as multidões continuavam a avançar para o suicídio inglório. A velha herança corrompia-se e dispersava-se, ao sabor das marés revolucionárias.
Quando António Sardinha e os seus companheiros surgiram, a herança estava quase perdida. Restavam, apenas, valores morais, nobres memórias, aqui e além um último marco da glória antiga. Sobre a galeria tradicional acumulara-se a poeira sórdida das calúnias. O espírito da raça declinava, passivo e inerte.
O grupo constituído por Sardinha e outros renovadores veio sacudir a sonolência nacional. Eram todos, como ele próprio disse de Xavier Cordeiro, «dessas grandes almas que, no momento da dúvida, sabem crer — e crer intemeratamente». Possuídos de absoluta confiança na sua missão, reanimaram as verdades portuguesas. Tão alto o seu clamor — que os ecos despertaram e as sementes refloriram. Estava a caminho a Revolução Nacional. A Pátria renascia das cinzas dum século de revoltas, de pilhagens e de falências. Adivinhava-se no horizonte a claridade promissora!

III
Chamou-lhe pois com justiça Pedro Teotónio Pereira o nosso «profeta dos tempos modernos». Não posso esquecer que, ao seu lado, cada qual num sector diferente, cada qual dentro do seu temperamento e dos seus recursos, outros «profetas dos tempos modernos» se entregaram à mesma cruzada. Interessa-me, neste momento, pôr em relevo a figura de António Sardinha — e o que atrás recordo e só com o objectivo de o situar na sua moldura histórica, de salientar as razões superiores e determinantes da sue obra.
Obra que deixou, atrás de si, luminoso vestígio. Obra de revisão e de rectificação no campo da História; de definição e actualização no campo das doutrinas sociais e políticas; de esclarecimento na crítica literária; de exaltação nos poemas da Terra e da Gente.
Antes de mais nada, António Sardinha emendou, com fervor de justiceiro, os erros dos panfletários do Liberalismo que tinham desfigurado as verídicas fisionomias dos maiores criadores e modeladores da nacionalidade. Assim o afirmou: «a melhor maneira de servir o seu país, é amá-lo e defendê-lo na integridade da sua História». Só por esta magnífica tarefa merece a nossa gratidão. Compreendem-no as gerações novas, que geralmente veneram e conservam o seu nome.
Ao mesmo tempo, António Sardinha reavivou os princípios tradicionais em que se firmara a nossa grandeza de séculos. O seu verbo quente, persuasivo, desembaraçou-os do pesado fardo dos mal-entendidos e das deturpações de má-fé com que os mascaravam os propagandistas liberais-democratas. E tornou-se o arauto duma reintegração necessária, à sombra da qual viria a tornar-se viável o ressurgimento nacional.
Lançou, enfim, os brados de combate e de esperança que haviam de incitar a mocidade portuguesa. «À geração que sobe para a vida pertence o grande passo...» Convencidos das responsabilidades e deveres que lhes cabiam, as jovens falanges nacionalistas subiram ao assalto da cidadela demo-liberal — até alcançarem a vitória !
«Ó Deus de Ourique, cumpre o prometido! Leva-nos contra os novos muçulmanos...» — clamava Sardinha. O Deus de Ourique atendeu a súplica do poeta. E os novos muçulmanos, surpreendidos pela arrancada intrépida, largaram em plena debandada.
Nesta hora de piedosa comemoração, relembro os títulos dos principais livros de António Sardinha.
Primeiro, os reconfortantes capítulos do Valor da Raça. Desde então o seu belo esforço não mais se quebrou ou afrouxou. No jornalismo doutrinário e polemístico, revelou-se o escritor político e o ensaísta. Daí resultaram os volumes já celebres: Ao princípio era o Verbo, Ao ritmo da Ampulheta, Na Feira dos Mitos, Durante a Fogueira, À Sombra dos Pórticos, Da Hera nas Colunas, Purgatório das Ideias. Mencionarei ainda, além da Aliança Peninsular, o longo prefácio à História e Teoria das Cortes Gerais, do Visconde de Santarém. E seria injusto apagar o poeta, cheio de amoroso transporte pelos motivos líricos da raça: o poeta de Tronco Reverdecido, de Epopeia da Planície, de Quando as Nascentes Despertam..., de Na Corte da Saudade, de Chuva da Tarde.
Morto prematuramente, no apogeu da maturação intelectual, quando a sua campanha se alargava na defesa e apologia da Civilização do Ocidente sob a égide do universalismo católico — António Sardinha deixou vazio um grande lugar. Chamou-o a Providência na altura em que se anteviam clarões de anunciação. Também «o profeta dos tempos modernos» sucumbiu à vista da Terra Prometida!
O livro que lhe dedicou o Professor brasileiro Guilherme Auler é mais uma prova da larga projecção do nome e da obra de António Sardinha além-Atlântico.
Trata-se da edição em volume de uma conferência pronunciada no Gabinete Português de Leitura do Recife. Trabalho denso e honesto, sempre baseado em citações do escritor e de alguns dos seus mais próximos amigos ou companheiros de luta — em cada página se deparam o culto pela memória de Sardinha e a admiração pela sua obra.
Vê-se bem que, ao tomá-lo como objecto de estudo, Guilherme Auler teve o intuito de abraçar, em conjunto, o vasto movimento de ideias do Integralismo Lusitano — e as suas decisivas consequências na vida portuguesa das ultimas décadas.
Efectivamente, compreende-se o efeito que deve produzir num crítico estrangeiro desejoso de analisar e explicar a nossa História desde 1910 para cá o extraordinário contraste entre a sombria atmosfera dos primeiros vinte anos da centúria e o visível impulso de ressurgimento a partir de 1926. Quando se aprofundam as raízes da impressionante metamorfose, encontra-se, como um dos factores essenciais da desintoxicação da inteligência portuguesa, que tornou viável a empresa salvadora e restauradora — o aparecimento do grupo de precursores de 1914-1915. Proclamá-lo é prestar-lhe a homenagem merecida — e simples acto de justiça.
Assim parece ter pensado Guilherme Auler, quando se lançou na composição deste livro. E nada surpreende que resolvesse considerar António Sardinha como figura-expoente do movimento integralista. Claro que todos sabemos quanto os seus fundadores deveram não só à galeria dos mestres da Contra-Revolução (a começar nos dos finais do Século XVIII e princípios do seguinte), mas também aos tenazes, intransigentes batalhadores do Legitimismo.
Mas na "Nação Portuguesa", primeiro, na "Monarquia", depois, é que se organizaram, sistematizaram e actualizaram os fragmentos, até aí dispersos ou inertes, de uma doutrina completa de reintegração nacional.
Pela chama que lhe aquecia a alma e os escritos; pelo entusiasmo posto no lançar da nova ofensiva; pela irradiação pessoal; pelo ascendente exercido sobre uma juventude sequiosa e inquieta; até pelo prematuro fim que o poupou à usura inevitável dos tempos e dos combates — António Sardinha é, sem duvida, o mais representativo de todos. Se a empresa se não suspendeu com a sua falta e só mais tarde veio a dar os primeiros frutos, nem por isso poderá ser esquecida ou diminuída a sua acção; nem por isso deixara de ser constante, no meio de nós, a sue presença de animador, de condutor, de guia — luminosa sombra que adivinhamos, ardente e clara, perdida na extrema vanguarda da batalha!
Divide Guilherme Auler o seu trabalho em dez capítulos, que se ocupam das várias facetas da personalidade de António Sardinha: I — O Perfil; II — Sua obra; III — Suas Ideias e Doutrinas; IV—Seu Apostolado; V—A Aliança Peninsular; VI — Legitimidade — A Questão Dinástica; VII — O Poeta; VIII — O Pensamento Tradicionalista; IX — Renovador da História Portuguesa; X —Crítico e Literato.
De um modo geral, estamos em frente de uma apologia.
O autor expõe, aceita, exalta os pontos de vista do seu biografado e nunca insinua qualquer discordância ou contestação. Pelo que o livro nos mostra, Guilherme Auler adere a todas as teses defendidas por Sardinha — é seu discípulo incondicional.
A intenção que o determinou a escrever estas paginas consistiu, por certo, em divulgar o pensamento do ensaísta, poeta, doutrinador e historiógrafo português — como quem se acha firmemente persuadido de atirar assim a boa semente aos que o lerem no Brasil. Com nitidez o revelam os períodos finais: — «Dum lucem perenam é o dístico do ex-libris de António Sardinha, repetimos. Toda a sua produção intelectual está guiada por estas três palavras. É eterna, desafiando o tempo, sempre actual e viva como o fogo simbólico da tocha fumegante. Ao princípio era o Verbo».
Só me parece digno de louvor tal procedimento. Guilherme Auler admira e segue sinceramente António Sardinha. Não hesita em apregoá-lo aos quatro ventos, sem aquele mesquinho sentimento de falso amor-próprio que leva, tantas vezes, os mais novos à ingratidão e à rebeldia para com os que os antecederam e lhes abriram a estrada. Este livro adquire, pois, a nobre qualidade moral de um panegírico — livre, espontâneo, desassombrado. Exemplo a salientar, perante todos quantos enfermam daquela triste doença castigada com doce severidade por Manuel Bernardes, quando exclamava, na Nova Floresta :— «Que maior necedade, que receber o benefício e esquecer-se do benfeitor?»
O estudo do Professor do Recife ressente-se, no meu entender, do método defeituoso que seguiu: fragmentar a rica e forte personalidade de António Sardinha numa série de compartimentos-estanques — a luta política, a doutrinação, a Poesia, a História, a Crítica Literária.
Embora ilumine com precisão cada um destes campos de actividade —nunca nos dá a visão de conjunto, o retrato em corpo inteiro. Temos de ver apenas uma parte de cada vez. Preferiríamos abraçar, pelo menos numa síntese que servisse de conclusão, — o todo. Daqui resulta que Guilherme Auler, mais do que o estudo completo de Sardinha, oferece-nos uma valiosa colecção de subsídios, que outro aproveitará para traçá-lo. Nem por isso lhe regatearei o apreço que merece — pois o seu labor é sério, útil, digno da confiança dos futuros desbravadores da mesma seara.
João Ameal
(in «A Verdade é só uma», Livraria Tavares Martins, Porto, 1960, págs. 225/236)