sexta-feira, dezembro 31, 2004

UM VENCEDOR DA MORTE

Houve no século passado, em Portugal, um grupo de brilhantes escritores que a eles mesmos se chamaram os «vencidos da vida». Não resta dúvida que assinalaram um período áureo nas letras portuguesas. Mas o esplendor da forma, a riqueza de engenho, a capacidade descritiva, a penetração das análises psicológicas, o poder da imaginação criadora destes homens coincidia com o desfalecimento total da nação, que se precipitara nos abismos da decadência religiosa, moral, política e económica. Foi este espectáculo contristador que os levou ao desânimo, e alguns até mesmo ao desespero.
Eram com efeito vencidos da vida.
Nesse panorama, o suicídio de Antero de Quental não era de causar espanto. E o melhor que outros podiam fazer era procurar, como Oliveira Martins, nas glórias do passado lusitano um refúgio para esquecer as desgraças do presente. O autor do "Portugal Contemporâneo", páginas de amargura, era o idealizador dos heróis de outrora quando escrevia a "Vida de Nun'Álvares" e "Os Filhos de D. João I".
Olhando para a realidade dos seus dias, todos viam Portugal em ruínas, e não encontravam nenhuma saída. A ironia de Eça despejava-se como fel e Guerra Junqueiro era o poeta das maldições da Pátria.
Assim entraram pelos anos do novo século, vendo Portugal cada vez mais envelhecido e decrépito, sem energias para se levantar do marasmo em que caíra.
Foi quando um jovem ardoroso começou a compor versos de esperança. Na ânsia de renovar, formar, erguer os espíritos numa cruzada de recuperação, este jovem cavaleiro das letras falava uma linguagem diferente, a que não mais se estava acostumado. Tinha diante de si a Nação restaurada, quando ninguém mais acreditava na possibilidade de tirá-la das ruínas.
Por que desanimar ante o presente e quedar-se numa inerte atitude contemplativa em face das glórias do passado? Por que não retomar a caminhada histórica de Portugal, que se havia interrompido?
Foi o que tentou este poeta e pensador político, à frente de um pugilo de companheiros que desde logo conseguiu reunir em torno de sua personalidade vigorosa e atraente.
Portugal perecia pela falta de uma doutrina. Eis o que fazia ver o jovem, político e poeta, que arrancado à ilusão republicana dos seus primeiros anos vinha pregar corajosamente a restauração monárquica. Não porém a restauração da monarquia constitucional, que fora o primeiro passo para a ruína total da nação, consumada com a república. Era preciso tornar a descobrir o sentido da marcha histórica de Portugal, abandonada desde que, enfeudado economicamente à Inglaterra e ideologicamente à França de 89, o país perdera toda a autenticidade política. A doutrina que a podia salvar era uma doutrina fundada na tradição, na história, não como volta a um passado morto, mas como impulso de uma consciência secular desejosa de se renovar. A tradição — ensinava António Sardinha — é permanência na renovação, é a substância do viver colectivo, é a fonte do progresso autêntico.
Arrebatado deste mundo quando ainda na plenitude de suas forças, Sardinha deixava aos seus patrícios uma herança preciosíssima. Encontrara-se enfim a doutrina que levava Portugal a reencontrar-se consigo mesmo. Não era nenhuma elucubração meramente teórica, à maneira das abstracções do liberalismo. Não eram devaneios de saudosistas ou contemplações estéticas do passado. Era como que a intuição da própria essência nacional, era o fruto de uma rectificação histórica, valendo por uma contestação radical ao pessimismo dos vencidos da vida.
Sua pregação não foi vã. E quando os homens de bem do exército português resolveram limpar aquele fim de feira em que se transformara a república, a doutrina de Sardinha e seus companheiros forneceu aos estruturadores da nova ordem política os melhores elementos que puderam encontrar. Salazar restaurava a dignidade de Portugal no concerto das nações e saneava as suas finanças. Ao mesmo tempo, sinais de uma renovação mais auspiciosa se faziam sentir. A mensagem de Fátima irradiava-se por todo o país e espalhava-se depois pelo mundo. Era a ressurreição espiritual.
Entretanto, os herdeiros de Sardinha, fiéis ao pensamento do mestre e companheiro de lutas, continuaram a viver no exílio, ou na oposição. A restauração integral por que se batiam não chegara. E intransigentes, não pactuaram em nada com os desvios do Estado Novo português. Vinte e cinco anos após a morte do amigo dilecto e inesquecível, vinham de público homenageá-lo, em preito de saudade e de fidelidade, através de conferências que foram publicadas entre nós por "Reconquista". Dirigiam-se também à nação portuguesa fazendo ver qual a restauração, ou melhor, a instauração completa que propugnam, em manifesto subscrito por Hipólito Raposo, Alberto Monsaraz, Luís de Almeida Braga e Pequito Rebelo. Os quatro companheiros de António Sardinha, os seus companheiros da primeira hora, em meio às hesitações do presente reafirmavam a sua confiança na vocação de Portugal.
O telégrafo traz-nos agora laconicamente a notícia da morte de Hipólito Raposo.
Sua pregação chegara até ao Brasil. Quer pelas colunas dos "Diários Associados", quer pela colaboração dada a "Reconquista", este veterano da campanha iniciada por Sardinha fazia chegar até nós a sua palavra cálida e deleitava-nos com a sua maneira transparente, translúcida de escrever.
Mas aquela coluna partida do seu ex-libris — com os dizeres Ludibria vitae — estava a nos transmitir também as suas decepções, os seus cansaços. Quando o visitei, na mansão da rua São Ciro, há quatro anos, pareceu-me um leão alquebrado pelos anos, as lutas, os desenganos, um leão recolhido à sua caverna, como a pressentir a morte próxima, conservando porém no olhar aquela bravura indómita do rei das selvas. Alegrava-se vendo que no mundo luso das outras bandas do Atlântico encontravam repercussão as suas pregações, as pregações de António Sardinha. E como político experimentado, prevenia-me para que eu não viesse a sofrer desilusões neste trabalho insano e quase quixotesco, dos que desejamos reatar o elo histórico da vida de nossos povos.
Tenho diante de mim um de seus derradeiros artigos, «A crise das crises», escrito para "Reconquista". E aí leio:
«Há vinte séculos que se luta, pois desde a semana da Paixão os cristãos sempre viveram a resistir à perseguição e à adversidade.
Mas a grande crise do Ocidente nasceu com a Heresia Luterana, revigorou-se com os orgulhosos egotistas de Seiscentos e explodiu ruidosamente na Revolução Francesa. Ainda estamos colhendo os frutos de tão gafadas e venenosas sementes. Se é lei do cristão o sacrifício pelo Bem e pela Verdade sempre haverá razão de acusar e de bradar, só um que seja contra todos, pois a razão humana não é escrava do império do número.
Se não valer aos homens uma especial intervenção celeste, o cataclismo social poderá desencadear-se, como outros ruíram nos passados séculos, até extinguir de todo as civilizações, como a assíria, a egípcia, a grega ou a romana.
Essas civilizações morreram e não podiam remanescer, porque viviam de si e para si mesmas. Só a Igreja pôde salvar das ruínas o que em algumas havia de valores constantes: o Pensamento, o Direito, as Artes, as Letras, vitalizando a herança com as luzes da verdadeira espiritualidade. Também a Civilização Cristã pode sucumbir, eclipsar-se, escravizando-se os povos, assassinando os sacerdotes, incendiando as igrejas, exterminando gerações de crentes.
Mas a Igreja Católica mede-se em duração com própria eternidade, e qualquer poder humano ou satânico, destruidor dos ramos, das flores e dos frutos desta Àrvore da Redenção será sempre incapaz de prevalecer contra as eternas verdades que Cristo-Deus lhe deu para raízes
».
A fé e confiança inabalável na Igreja Católica fortaleciam o seu espírito. E a vista de Portugal, onde em Fátima se fizera sentir «uma especial intervenção celeste», reanimava o seu espírito combalido. Por isso nunca chegou a ser pessimista, jamais foi um desalentado. Morreu, sob o peso dos anos e das amarguras, mas sem ter perdido jamais a esperança.
Era este renovador das letras e do pensamento político de sua pátria que um dia, procurado por Eduardo Ortigão Burnay, neto de Ramalho Ortigão, recebia do autor das "Farpas" uma solicitação feita com insistência. Ramalho desejava avistar-se com Hipólito Raposo ou alguns dos outros redactores da "Nação Portuguesa", onde Sardinha e seus companheiros haviam desfraldado a sua bandeira.
Conta-nos Hipólito, em páginas reunidas no volume "Oferenda", o que foi este encontro de duas gerações. Pela boca de Ramalho Ortigão, em tom de penitência, falava a geração dos vencidos da vida. Referindo-se às desgraças, violências e crimes da república, acusava os homens do seu tempo, tendo para os novos uma palavra de esperança :
« — Fomos demolidores, negativos e dissolventes. Nada respeitámos, nada soubemos salvar; e as ruínas que hoje deploramos, ao desvario mental, aos erros dos homens do meu tempo devem ser atribuídos. Vejo agora aberto o caminho da salvação nacional: sigam por ele, para o bem da Pátria cega e martirizada. Neste exame de consciência, sinto remorsos com grande pena de não vos acompanhar. Cheguei tarde, só a tempo de vos deitar a bênção para a jornada...»
Quase ao findar dos seus dias de vida terrena, Ramalho Ortigão tornava a encontrar a esperança que perdera. Remanescente das épocas dos vencidos da vida, deixava a sua benção para esses vencedores da morte, sim — para os que faziam a Nação Portuguesa ressurgir de um entorpecimento mortal e iniciavam a grande campanha do resgate.
Hipólito Raposo foi um desses vencedores.
Hoje somos nós, no mundo luso destas plagas americanas, que precisamos de uma doutrina de salvação nacional, fundada na história e na consciência da nossa própria vocação, do nosso ser autêntico.
A democracia anglo-saxónica, em fórmulas importadas, o comunismo invasor, os socialismos desnacionalizadores, aí estão.
E o Brasil onde estará?
Saibamos redescobri-lo, como Sardinha redescobriu Portugal.
Peçamos a Hipólito Raposo uma bênção paternal, como a que ele recebeu de Ramalho Ortigão, uma bênção propiciadora da intervenção celeste que nos há-de salvar.
São Paulo (Brasil), Setembro de 1953.
J. P. Galvão de Sousa
(In «Gil Vicente», n.º 9/10, Setembro/Outubro de 1953, vol. 4, págs. 171/174)