domingo, janeiro 16, 2005

O senhor dos dias

O tempo comum da liturgia é exactamente isso: a celebração do tempo onde aparentemente nada acontece, sem festas de maior, a não ser aquelas que o tempo foi semeando dentro da notoriedade das pessoas ou dos acontecimentos. Quando arrumamos os presépios e as prendas se sujeitam ao natural desgaste de perderem a novidade, a vida retoma o seu tom natural, com os fins-de-semana ou a perspectiva dos feriados transformados em sucedâneos do dia sagrado dos crentes. Nos nossos lados, mesmo para os não cristãos, o domingo acabou por imperar socialmente como o dia de repouso.
Há alguns cristãos que julgam prestar um enorme favor a Deus pelo facto de, ao domingo, d'Ele se lembrarem, dando-se mesmo ao incómodo de interromper o merecido descanso para irem ao templo e assistirem a uma celebração litúrgica que, por muito actualizada que esteja ainda não se moldou a um fast food, refeição ligeira, aquecida apressadamente no micro-ondas e rapidamente deglutida no intervalo de dois silêncios.
O domingo é muito mais que um componente do fim-de-semana. Como também um dia santo é mais que um saboroso feriado que vem cortar a agrura dos dias intermináveis de trabalho. Precisamos revisitar continuamente o sentido sacral e ritualizado do tempo. E remeter-nos às grandes memórias onde se radica a nossa fé e a dimensão comunitária que a envolve e explica. Na lógica do consumo individual, utilitário e rentável de objectos e eventos, não chegaremos à dimensão transcendente da vivência cristã ao evocar acontecimentos como a Ceia, a Morte e a Ressureição de Cristo. Tudo isso, nessa perspectiva, não passará de rendilhado bafiento para iniciados ou apenas desiludidos da modernidade.
O domingo - lembro uma Carta do Papa - é a Páscoa da semana, a vitória sobre a morte, o primeiro dia do mundo e a prefiguração do último. O domingo está no centro do mistério do tempo, é o eixo da história com referência à origem e ao destino final da humanidade. Tem horizonte muito mais amplo que qualquer fim-de-semana alucinante ou o estado de distensão que o descanso semanal propicia. Raramente nos lembramos que é o dia em que somos arrancados das grandes solidões, convidados para a Ceia, para celebrar, em abundância, o banquete da Palavra e do Pão. Sair de casa para visitar alguém, participar numa liturgia, partilhar a alegria ou uma mágoa, é mais indispensável à vida do que parece.
Esta teoria não é contra ninguém. Mas precisa vir ao de cima no tempo comum, onde aparentemente nada acontece.

António Rego