terça-feira, janeiro 18, 2005

UM (INSUSPEITO) DEPOIMENTO DE ANGOLA

O SOBREVIVENTE
Quando José Eduardo dos Santos foi nomeado Presidente da República Popular de Angola, em 1979, substituindo Agostinho Neto, ninguém poderia prever que vinte e cinco anos mais tarde ele ainda ocuparia a mesma posição. O mundo é que se movera muito. Na época o então jovem engenheiro de minas, formado na União Soviética, com uma breve e discreta passagem pela guerrilha, parecia ser uma figura frágil, passível de se deixar manipular pela velha guarda do MPLA, que o apoiou, sem todavia emergir como uma ameaça imediata em relação às restantes correntes do partido. Nos anos que se seguiram, porém, José Eduardo dos Santos mostrou-se capaz de controlar, quase sem levantar a voz, um movimento que muitos dos seus próprios dirigentes consideram ser um perigosíssimo ninho de vespas, ao mesmo tempo que enterrava o seu inimigo histórico, Jonas Savimbi, e se metamorfoseava de ditador comunista no melhor amigo dos americanos em África.
Metamorfose não será, aliás, a palavra mais correcta. Não é como se um girino se transformasse em rã, ou uma lagarta em borboleta - é, antes, como se uma serpente se transmudasse em pomba, sem todavia perder o veneno. Olhando para José Eduardo dos Santos e para os seus homens de confiança, para estes novos democratas angolanos, ultra-liberais, prósperos empresários e latifundiários, cuja maior ambição é a de serem fotografados ao lado de George Bush nos jardins da Casa Branca, custa a crer, de facto, que ainda há poucos anos lutassem, na "trincheira firme do socialismo em África", contra a "democracia burguesa e o imperialismo americano". Eles próprios, creio, já se esqueceram disso. Em Angola pouca gente se recorda daqueles anos. É um facto histórico, sim, mas sem qualquer relevância.
A verdade é que José Eduardo dos Santos estava talhado para sobreviver.
Nascido numa família humilde, a adesão ao MPLA possibilitou-lhe romper com o destino, num território, então colónia portuguesa, onde nascer negro e pobre era quase uma condenação. Em 1992, durante a campanha eleitoral, a UNITA desencadeou uma campanha, de uma estupidez miserável, tentando demonstrar que Eduardo dos Santos teria nascido não em Luanda, como assegura a versão oficial, mas em São Tomé. Ainda hoje muitos partidos de base bakongo, do norte de Angola, continuam a insistir nisto.
José Eduardo dos Santos terá começado a revelar um extraordinário talento para a intriga política, com a hábil utilização do silêncio e das elipses, ainda na época da guerrilha, vindo a ascender nas estruturas do movimento depois de ter conseguido reconciliar com Agostinho Neto uma facção radical dos guerrilheiros. Mais espantosa ainda é a forma como foi capaz de sobreviver sem um arranhão (físico, político, e, inclusive, moral) à violenta orgia de sangue que se seguiu ao levantamento nitista de 27 de Maio de 1977. Na sequência destes acontecimentos, vale a pena recordar, desapareceu quase metade do Comité Central do MPLA. Milhares de militantes foram presos e assassinados, juntamente com dirigentes de outras formações à esquerda do partido, além de muitos soldados e civis sem quaisquer ligações com o levantamento.
Ainda hoje não se sabe exactamente de que lado estava José Eduardo dos Santos e o que pensa sobre a tragédia. O que é certo é que pouco tempo depois de tomar o poder fez com que fossem libertados todos os presos políticos, com a excepção daqueles ligados aos movimentos armados, colocando um ponto final na grande matança, e iniciando uma nova era, muito menos violenta do que a anterior, embora mais vigiada ideologicamente. Nos anos que se seguiram, até ao colapso do mundo socialista, pouca contestação interna terá existido, havendo apenas o registro da prisão, por pouco tempo, do escritor Costa Andrade (Ndunduma), hoje deputado do MPLA, e de mais duas ou três figuras menores do partido, acusados de colocar em causa a imagem do Presidente através da encenação de uma peça de teatro.
José Eduardo dos Santos chegou assim às primeiras eleições livres em Angola, em 1992, com a imagem, relativamente positiva, de um homem avesso à violência, elegante e requintado, e de uma discrição a roçar o mistério. Contra ele, porém, já pesavam inúmeras acusações de corrupção. Nos anos que se seguiram, após as eleições (nas quais não conseguiu obter a maioria absoluta dos votos) e o recomeço da guerra, tais acusações passaram a ser cada vez mais frequentes, com diversas organizações internacionais a denunciarem a estreita ligação entre a presidência angolana e a máfia internacional do armamento. A nomeação de Pierre Falcone, comerciante de
armamento, a contas com a justiça francesa, para um cargo diplomático na UNESCO como representante de Angola, veio dar uma imprevista credibilidade a tais acusações, colocando José Eduardo dos Santos numa posição muito frágil, tanto interna quanto externamente. Este terá sido, provavelmente, o maior erro político de toda a sua longa carreira.
Em Angola, o movimento de democratização, que pode talvez ser atrasado, mas não detido, parece pouco favorável a José Eduardo dos Santos. A imprensa independente tem vindo a atacá-lo, com surpreendente ferocidade, e mesmo dentro do MPLA já é possível escutar vozes, embora mais ou menos em surdina, a exigir o seu afastamento.
Creio, no entanto, que todas as previsões são temerárias. José Eduardo dos Santos foi capaz de sobreviver à pobreza, à guerrilha, ao 27 de Maio de 1977, ao estrondoso colapso do mundo socialista e a Jonas Savimbi. Talvez - ironias da história - possa sobreviver também à democracia.

José Euardo Agualusa