Encontros virtuais
Tinha terminado há que tempos a reunião do Conselho de Estado e os dois homens ainda continuavam sozinhos no longo corredor do Palácio de Belém, andando para cá e para lá e falando animadamente à distância de qualquer ouvido curioso.
O passinho miúdo, lembrando um pinguim, identificava logo o mais baixo: era o Engenheiro. O outro, agasalhado num sobretudo azulão e enfiado num cachecol laranja, era também reconhecível de longe. Era mais alto, a cabeça brilhante de gel a reflectir as luzes do tecto, e caminhava um tanto curvado para a frente, sublinhando o que dizia com gestos largos. Era o nosso Primeiro.
A expressão contrariada denunciava o enfado.
- Oh pá, eu até posso perder as eleições, não me queixo, eu até estou habituado a perder, já levei sopa de uma data de gajas, mas o que não me conformo é com esta embirração…
O Engenheiro ria e abanava a cabeça que sim.
- Pois, acho mesmo que vai perder, Pedro… eu como sabe sou um observador imparcial…. mas também me parece que sim, o Sócrates consegue mesmo… é fraquinho, mas ainda assim…
E de súbito, curioso:
- Mas a que embirração é que se refere?
O Primeiro fez um trejeito irritado e encolheu os ombros.
- Ora… então não se nota? São os ricos, os poderosos, estão todos contra mim… você já viu? É o tio Balsemão, é o tio Belmiro, são os bancos, a malta do capital… Mas o que é que eu lhes fiz?!!!
O outro ria com mais vontade, divertido.
- Oh Pedro, desculpe lá, você é um bocado ingénuo… ainda nem se deu conta da bronca que armou…
O Primeiro sobressaltou-se:
- Bronca? Qual bronca?
O Engenheiro, condescendente, acedeu em explicar.
- Você não se lembra daquela reunião do Grupo Bilderberg?
- Ora essa, eu tenho muito boa memória, até fui o convidado de honra…
- Não é bem isso, houve dois convidados que foram apresentados à sociedade nessa ocasião… foram debutar, se me permite… foram a exame… - (o Engenheiro ria com gosto) - Foi você e o Sócrates..
- Ou isso.. mas afinal o que é que tem? Não me saí bem? Eu até acho que falei bem… os gajos bateram palmas e tudo…
- Pois é… bateram palmas… mas acho que não gostaram nada que você chegasse com quase uma hora de atraso… naquelas coisas a pontualidade é uma virtude muito apreciada…
- Caramba, o que é que você quer, se soubesse a que horas me deitei nessa noite!...
- Sim, calculo… notava-se pelos papos, as olheiras… e aparentava algo ensonado…
Nesta altura o Engenheiro estava mais divertido que nunca. E o Primeiro irritou-se levemente.
- Mas afinal o que é que eu fiz? Diga lá, o que é que eu fiz?
- Bom, para começar chegou com quase uma hora de atraso… e depois aquelas graçolas…
- Ah já percebo, está a referir-se àquela confusão… pá, o que é que quer, eu estava um bocado cansado, da noite, tá a ver, e depois quando os ouvi falar em Supremo Arquitecto pensei que estavam a falar do José António Saraiva, como estava ali o Balsemão… um lapso acontece a qualquer um…
- Sim, é verdade… acontece a qualquer um… mas o Sócrates tinha-se preparado…
- Lá está você a insinuar que eu não me preparo devidamente… o que se passou é que aquilo era uma grande chachada… um ambiente pesado, o caraças… pareceu-me que era preciso era descontrair…
- E vai daí pôs-se a dizer aquelas piadas sobre judeus!
- Oh Engenheiro, também não exagere, foi só para quebrar o gelo, lembrei-me de umas anedotas que toda a gente conta, nem sei porque é que me lembrei disso. Podiam ser sobre pretos, ou loiras, ou alentejanos… calhou a ser sobre judeus…
O Engenheiro nesta altura abanava a cabeça, desalentado.
- Você não entende mesmo… lá que dissesse que a polícia em Israel quando quer dispersar uma manifestação começa a fazer um peditório, ainda vá lá; agora que perguntasse ao pessoal da sua mesa quantos judeus é que eles achavam que cabiam no cinzeiro de um Volkswagen foi um bocado demais!
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