sábado, fevereiro 26, 2005

MANUEL MARIA MÚRIAS

"A minha amizade com o Manuel Maria Múrias, que conhecia mal, começou na Cela 1 de Caxias. Fui lá parar sob o argumento indiscutível de meia dúzia de G3 apontadas ao corpo que substituíram com inegável vantagem qualquer mandato de captura, mesmo um desses em branco que o senhor Otelo assinava às resmas para o que desse e viesse.
O Manuel Maria tinha fama de fascista e, para mais, atrevera-se a fundar, com Cruz Rodrigues e Miguel Freitas da Costa, um jornal que se opunha ao glorioso movimento dos Cravos — e dos cravas — que pela época fazia furor. Chegara mesmo a escrever um magistral "Discurso de Marco António", uma peça intolerável que "O Diabo" hoje reproduz para os mais esquecidos.
Foram tempos soturnos que só o humor da maioria dos catorze enlatados naquele cárcere da liberdade com lotação para metade tornou suportável. Recordo o entusiasmo juvenil do Manuel Maria pelas obras de Bakunine, de me obrigar a lê-las e das discussões pela noite dentro. Como recordo a greve da fome que inventou e levou a sério, até ir de charola para a enfermaria. A greve tinha pouca razão de ser. Todos sabíamos a ilegalidade da nossa prisão, quem detinha as rédeas do verdadeiro poder e a inutilidade de qualquer protesto. Só que o Manuel Maria não era — nunca foi — homem para estar quieto e conformado. A acção chamava-o e ali preso, o seu "Bandarra" fechado pelos campeões da liberdade e inimigos da censura, tinha de fazer alguma coisa. Foi a sério: não comeu e só consumiu água de garrafão mas não perdeu uma centelha do seu sentido de humor. Por muito que nos custasse vê-lo a definhar, as nossas gargalhadas ecoavam pelos corredores álgidos de Caxias.
Foi também por isso que começou a pensar num novo jornal para quando saíssemos da prisão. Ali nasceu "A Rua" que tive a honra de ajudar a cozinhar nos longos meses que se seguiram e do qual fui o derradeiro chefe de redacção. Tal como o "Bandarra", "A Rua" seria O Combate do Futuro. Como marca registada do seu humor, Manuel Maria acrescentaria: o único jornal da direita que não é do centro — a brincar, traçou um estatuto redactorial e uma praxis que nunca foi abandonada até ao último número.
Apesar de tudo, das dezenas de processos (Manuel Maria foi, provavelmente o único jornalista português a sofrer pena de prisão por alegado abuso de liberdade de Imprensa), da falta de recursos, da publicidade que não entrava por medo dos anunciantes potenciais, das vendas que não cresciam pelo mesmo motivo (ainda me recordo de pessoas que compravam o jornal quase às escondidas e o dobravam de forma a não se poder ver o cabeçalho), a aventura ainda durou uns bons quatro ou cinco anos.
Daí para cá, Manuel Maria viveu quase esquecido. O seu nome era perigoso para qualquer jornal e, de resto, começou a achar ocioso lutar contra o status quo. Dedicou-se à investigação que sempre ocupara o melhor do seu tempo. Editou, na "Nova Arrancada", um livro sobre Lisboa que tanto amava: "Chiado — do século XII ao 25 de Abril" e um outro sobre a política portuguesa "De Salazar a Costa Gomes". Aí trata com particular atenção dois inimigos de estimação: Marcelo Caetano e Costa Gomes.
Morreu cedo, desiludido e injustiçado.
Que, como dizia Antero, o seu coração durma na mão de Deus eternamente e que eu o possa rever se tanto me for dado."

Walter Ventura
(in O Diabo, pág. 8, 17.10.2000)