domingo, fevereiro 20, 2005

Sobre o nosso tempo

"(...) Os historiadores e sociólogos do futuro regalar-se-ão, talvez, com o estudo de uma época tão interessante como a nossa; para mim, que tenho de a viver, é uma considerável chatice.
Claro, já me disseram em conversa: homem, não exageres! Então, e em 1383, não era a coisa muito mais grave, com o país dividido, em grave crise interna, e as suas fronteiras, a sua própria existência, ameaçadas?
Pois bem: não, não me parece que fosse mais grave. Por duas razões: nesse período conturbado havia vontade e energias para lutar e havia cabeças que serviam para algo mais do que britar pinhões ou gritar "fora o árbitro".
(...)
No entanto, por estranho que vos pareça, esta crónica não pretende juntar-se, simplesmente, ao já amplo coro de lamentações que se faz ouvir e ler um pouco por toda a parte. O que ela pretende é chamar - ainda que só um pouco - a vossa atenção para o seguinte facto: a existência de um país, como tal, como nação e Estado, essa existência é algo que, contra o que possa parecer, nunca está definitivamente adquirido nem garantido. É algo que se ganha todos os dias. É um esforço contínuo. Nunca tinham dado por isso?
Já ouvi, no meio das lamentações prevalecentes, vozes que reagiam bravamente dizendo: que diabo, somos um país com oitocentos anos de vida, oitocentos anos de história! Havemos de sair desta crise como saímos das outras!
Santas palavras. Mas elas não devem fazer-nos adormecer mais ainda do que já estamos. A antiga civilização egípcia durou milénios. A história universal é rica em países, impérios e povos cuja existência foi multissecular ou milenar e que, depois, desapareceram. Os nossos oitocentos anos não são um seguro de vida. Devemos olhá-los como importantíssima matéria de estudo, fonte de ensinamentos no que eles têm de positivo e negativo, mas não como garantia de continuidade, só porque sim.
(...)
Em termos mediatos, sei, evidentemente, que precisamos de um outro escol político - ou melhor, que precisamos de um, porque neste momento não o temos, de todo.
Por isso dizia eu há dias, numa escola superior, a alguns (e algumas) estudantes que se mostravam saudavelmente preocupados com a situação: não me perguntem o que deve ser feito: comecem a fazê-lo vocês. Mexam-se. Preparem-se, equipem o intelecto para virem substituir, tão rapidamente quanto possível, este pessoal menor. Em vez de se esgotarem a gritar contra as propinas, comecem a pensar em termos gerais; criem novos partidos ou mudem os actuais. (...)
"
Palavras do escritor João Aguiar, na revista "Super Interessante"