terça-feira, março 15, 2005

A DIREITA NUNCA EXISTIU?

Vai para um quarto de século, o saudoso Eduardo Freitas da Costa publicou no semanário "A Rua" um artigo que reproduzo a seguir.

A DIREITA NUNCA EXISTIU
Desde sempre - e mais agudamente, como é natural, nas épocas de crise - é costume observar-se que a “direita” não se sabe organizar, não tem capacidade para se defender, nem mostra a menor habilidade para assaltar o poder; que a “direita” não aparece, não vai votar quando é preciso, nunca promove esmagadoras mobilizações de massas; que a “direita” é apática, passiva, não se mexe, não se agita nem agita quem quer que seja. Quem não ouviu já estas ou parecidas acusações, repetidas - com desencantada tristeza por uns, com feroz alegria por outros – não apenas em Portugal, é claro, mas em Espanha, em França, na Itália... por toda a parte?
E atrás das criticas, a grande interrogação: Porquê? Porque se passa tudo isso com a “direita”? Porquê essa inoperância, essa falta de organização e actividade da “direita”? A resposta é provavelmente muito simples. A resposta, provavelmente, é que a chamada “direita", como entidade política, não existe e nunca existiu.
A que é uso, com efeito, chamar em política “a direita”? Sabe-se por demais como tudo começou: com o famoso acidente geográfico de se sentarem uns senhores à direita e outros à esquerda da sala nos Estados Gerais de que nasceu a Revolução francesa. Não tinha, então, o termo qualquer espécie de conteúdo ideológico e menos ainda qualquer tipo de consistência estrutural. Mas os que pretendiam subverter os esquemas da sociedade tal como ela se encontrava naturalmente organizada viram aí, na etiqueta simplificadora, um excelente instrumento de combate que souberam imediatamente aproveitar com astuta eficácia: a “direita” passaria a ser o nome que se havia de dar a tudo quanto se pretendia, justa ou injustamente, desmantelar e destruir: privilégios supostos ou reais, discriminações razoáveis ou irracionais, imobilismos estioladores ou tradições estimulantes.
Porque, realmente, naquilo a que é costume chamar “a direita” o que fundamentalmente se encontra condensado é, pura e simplesmente, a vida natural - tal como ela é na realidade e merece a pena ser vivida: o trabalho em paz, a propriedade honradamente ganha, a preparação cultural suficiente para o acesso decente às fontes de receita necessárias, a família sem abortos nem divórcios, os ócios gozados sem agressões interruptoras; tudo isto, é claro, com as também naturais injustiças, abusos, erros, desvios, - para os quais a indispensável estrutura jurídica, mais a dimensão e a maturidade da sociedade a que se aplica, terá de estabelecer os não menos indispensáveis mecanismos correctores. A “direita” é a naturalidade, a normalidade, o livre e espontâneo desenvolvimento das potencialidades orgânicas do Homem integral - alma e corpo. E por isso nunca pensou em criar nem organizações, nem defesas, nem mobilizações - como ninguém se lembra de estabelecer as normas e os exames que levem um pai a tratar
de dar de comer aos filhos ou uma dona de casa a lavar as camisas com que o marido há-de ir para o trabalho.
A “direita”, aquilo a que se convencionou chamar “a direita", nunca sentiu a necessidade de se estruturar em termos de combate, porque a única reivindicação que tem a apresentar é a de que se permita a todos uma vida “normal”, a de que se respeitem os valores “naturais” do Homem.
E “a esquerda”? As “esquerdas”? Essas, sim. Como do que tratam é de submeter a sociedade a esquemas construí-dos abstractamente, a formulações jurídicas aprioristicas (de onde acaba sempre por nascer o famoso divórcio entre "país legal" e "país real", de que sempre acabam por se queixar os povos dominados por elas), que não são naturais - têm fatalmente de montar máquinas destinadas a impor (à força: militar, económica, psicológica...) as ditas estruturas artificiais a situações naturais que elas contrariam por definição. Por isso as “esquerdas” se organizam, se defendem, se mobilizam, se infïltram, procuram assaltar o poder, procuram fazer tábua rasa do que encontram de normal e natural pela frente. E precisam de ter um “inimigo”, que mantenha tudo isso permanentemente em tensão, em alerta, precavido contra a famosa verificação de que “chassez le naturel, il revient au galop”; e o inimigo precisa de ser reconhecível com etiquetas simples, que evitem análises e reflexões (posto que estas imediatamente revelariam o truque), como podem ser - por ordem cronológica de invenção... - a “direita”, o “capitalismo monopolista e latifundiário”, o “fascismo”, o “imperialismo”...
A “direita política” é, efectivamente e assim, apenas uma grosseira embora eficaz inovação da esquerda. A “direita política” nunca existiu e só cristaliza como reacção, também natural, a quanto pretende destruir pela força tudo quanto é natural no Homem.
E se procurássemos institucionalizar a normalidade? Se organizássemos a naturalidade, para vivermos e sermos governados em termos naturais?
EDUARDO FREITAS DA COSTA


Na edição de hoje do "Diário de Notícias", saiu um artigo de opinião de Miguel Freitas da Costa, que me fez lembrar o outro. Segue-se já, duas linhas abaixo.
Não há dúvida: quem sai aos seus...

A DIREITA NUNCA EXISTIU
Na pré-história daquilo a que se chamou "revolução conservadora", nos Estados Unidos, o senador Barry Goldwater, candidato do Partido Republicano à Presidência, contra o democrata Lyndon Johnson (estamos em 1964), tinha um slogan "In your heart you know he's right". A campanha do Partido Democrático fez colar em cima dos cartazes e outdoors do candidato republicano uma faixa que dizia, simplesmente, "Yes, extreme right". Não se sabe em que medida esta brilhante ideia contribuiu para o resultado, mas o senador do Arizona sofreu uma das maiores derrotas de todos os tempos na história das presidenciais americanas. Na América - como neste mundo que os americanos em grande parte criaram - há uma geral e quase invencível repugnância pelas ideias políticas definidas e a etiqueta "direita", em particular, não dá muitos votos. O labéu "extrema direita", já se sabe, é puro veneno eleitoral.
Parece um contra-senso. A linguagem comum parece desmentir esta evidência política. Nunca se ouviu que Deus escrevesse torto por linhas direitas. Ou que os justos se sentassem à mão esquerda de Deus Pai. Um homem bom ou sério é recto ou direito. Há homens e mulheres às direitas - felizmente. Quem é que se lembraria de os gabar dizendo que são "às esquerdas"? Quando queremos honrar ou distinguir alguém não o sentamos do nosso lado esquerdo. A mão direita é a mão da justiça - ter muita mano izquierda, em espanhol, é ser habilidoso de uma maneira vagamente pejorativa. O que é turvo, ameaçador, sombrio, perverso, demoníaco - é "sinistro". Mesmo a esquerda quer "cortar a direito".
O problema é que a "direita" em política é uma invenção da esquerda. Antes da Revolução Francesa não existia essa divisão do espectro político entre esquerda e direita, que hoje achamos tão natural. Tem o significado que a esquerda desde o princípio lhe deu de um lado - à esquerda, claro - os amigos da Humanidade, do progresso e do futuro; do outro, os últimos redutos de um passado tremendo, os defensores dos privilégios de uns poucos contra os direitos e as legítimas aspirações dos muitos, a última linha de resistência de uma situação iníqua por definição que se recusa a morrer - e para o caso tanto faz que esteja morta e enterrada, como hoje está, há muito, o Antigo Regime. A doutrina estava na própria definição dos termos - e por isso Joseph de Maistre dava superficialmente razão aos revolucionários quando escrevia: "A contra-revolução não é uma revolução ao contrário, é o contrário de uma revolução". 200 anos de propaganda fizeram o resto: para a opinião que em geral se publica, nada do que acontece de politicamente mau deixa de ser imputado à "direita", incluindo os desmandos de toda a espécie de socialismo, no presente e sobretudo no século passado, incluindo o nacional-socialismo, ou a defesa da ortodoxia comunista. É uma coisa que toda a gente sabe. Não é preciso explicar isto nem ao mais ignorante dos cidadãos. No nosso coração - que ao contrário do que pensava Goldwater - está à esquerda e não pode deixar de ser de esquerda - sabemos quem é que tem razão.
O "caldo de cultura" em que vivemos - e que é comum ao que alguns chamávamos, no nosso santo fervor juvenil, "materialismo prático" e ao "materialismo dialéctico" - continua a fervilhar na panela. Enquanto for assim e persistir aquilo que o politólogo Jacques Ellul designava num livro dos anos 70 por "imagem motriz global" do nosso tempo, os "mitos modernos" da "luta de classes, a felicidade, o progresso, a juventude, a técnica e o trabalho", Adriano Moreira e outros poderão continuar a explicar sem escandalizar ninguém que "esquerda" e a "direita" são, muito simplesmente, os nomes que em política se dá aos pobres e aos ricos e que hoje ganhariam novo sentido - como explicou o ilustre professor na televisão - na guerra civil global do Norte contra o Sul, uma velhíssima ideia marxista e leninista agora rejuvenescida.
A "direita" foi e será sempre o que a esquerda quiser designar como tal. Só por desafio alguém se intitula "de direita". A "direita" não existe e nunca existiu como entidade filosófica ou política autónoma. O que existe é o Bem e o Mal, as verdades e as mentiras. O resto são arranjos partidários. Podem fazer muita falta. Mas são apenas arranjos partidários.
MIGUEL FREITAS DA COSTA