A LÍNGUA PORTUGUESA - essa desconhecida
A imprensa, quer falada quer escrita, tem vindo, com uma fúria ignorante e pedante, a destruir diária e sistematicamente a língua portuguesa, como se de bicho daninho se tratasse. Esta acção perniciosa a que todos nós assistimos, mais ou menos impávidos, não é nova: vem já de há longos anos, embora seja agora mais visível e atrevida e, sobretudo, ainda mais ignorante. Escritores que amaram a nossa língua, com o amor que ela devia merecer de todos nós, chamaram vezes sem conto a atenção para este facto. Para só citarmos alguns, de entre mortos e vivos, lembramos os Profs. Agostinho de Campos e Rodrigo de Sá Nogueira e os escritores Tomaz de Figueiredo, João de Araújo Correia e Domingos Monteiro. Mas muitos outros, directa ou indirectamente, lutaram com denodo por esta língua que ainda hoje também nós queremos que seja portuguesa.
É evidente que quando dizemos que a imprensa é responsável pela destruição sistemática da nossa lingua sabemos perfeitamente que não têm os jornalistas essa intenção clara e determinada. Mas há - e é necessário dizê-lo e repeti-lo até à saciedade - ignorância, muita ignorância, que faz com que esses mesmos jornalistas contribuam, de facto, para a destruição da língua portuguesa. O cuidado que seria necessário ter na redacção das notícias desapareceu; e o improviso atabalhoado, a que chamam muitas vezes à-vontade, redunda quase sempre num chorrilho de lugares-comuns ou de frases mal sonantes e de trazer por casa, no verdadeiro sentido da expressão.
Além disso, em nome de uma mal interpretada fidelidade ao pensamento do entrevistado, publicam-se respostas onde proliferam os solecismos, abundam os estrangeirismos e campeiam os neologismos desnecessários. Quanto às frases ocas e vazias de qualquer significado, que de há anos para cá toda a gente usa e ninguém sabe ao certo o que significam, é melhor nem falar, porque estão a tornar tragicamente ridículas as pessoas que as proferem. O pretensiosismo leva os que não conhecem a língua que dizem sua a começar todas as frases por "pois", a terminá-las por "e não só" ou "já" e a pôr-lhes no meio, à cautela, "salvo melhor opinião". E como o disparate se propaga assustadoramente depressa, temos qualquer dia todo este Portugal a falar por chavões, por lugares-comuns, por frases estereotipadas que ninguém sabe o que querem dizer mas toda a gente, pedantemente, finge entender.
Como se isto não bastasse para liquidar sumária e ingloriamente a língua de Camões - porque, não convém esquecê-lo, esta é a língua de Camões, autor de "Os Lusíadas", actualmente mais de fama universal que nacional -, fez-se uma reforma do ensino em que a língua, uma vez mais e ainda, foi vítima de uma falta de senso e de cuidado que, se não é criminosa, para lá caminha. A pretexto de actualizar os programas de Português do ensino secundário, ideia que já vinha pelo menos do ano lectivo de 1971-72, puseram-se de lado as breves mas tão necessárias noções da lingua latina - de onde, por espantoso que pareça, provém a língua portuguesa; deu-se demasiada importância às chamadas "noções de carácter linguístico", que os alunos dificilmente entendem porque mal preparados e os professores com dificuldade ensinam; valorizou-se de tal modo a criatividade dos alunos que estes, sem bases de qualquer espécie, tornaram-se incapazes de escrever uma simples carta à familia; e, por fim - embora seja dos pontos mais importantes - "sanearam-se", como agora se diz, os clássicos, ou seja, os que deviam ser ensinados nas classes, substituindo-os por textos de maus escritores ou de indivíduos cujo único lugar era na carteira dos alunos, presidindo a esta escolha o critério ideológico e não o cultural ou o literário. Perante isto, só por verdadeiro milagre podem os alunos das nossas escolas saber falar e escrever correctamente a língua portuguesa. E os milagres não surgem todos os dias, nem mesmo todos os anos lectivos, porque senão deixariam de ser milagres.
O povo - de quem tanto se fala agora a propósito e a despropósito - o povo simples onde foram os nossos maiores escritores buscar palavras e expressões, e que durante anos guardou, como se fora relíquia, a pureza e a graciosidade da nossa língua, também ele se deixou corromper pelos que vinham da cidade ou do estrangeiro e cuja fala viciada se difundiu com a celeridade com que o erro normalmente se propaga. Depois, foi a imprensa que chegou a toda a parte e tudo se perdeu. "Houve tempo em que o povo foi mestre da língua. Hoje, corrompido pelo mau locutor e pelo mau escritor, é um vaso de tolices", disse João de Araújo Correia no seu livro sintomaticamente chamado "Enfermaria do idioma". Um livro a ler e a reler, pelos que ainda amam esta língua.
Defender a língua portuguesa pode parecer pregar no deserto ou falar a surdos. Mas às vezes, quando não querem os homens ouvir a voz da razão, é necessário pregar no deserto ou falar a surdos. Foi por isso que Santo António foi pregar aos peixes: e só então os homens o ouviram.
É urgente defender a língua portuguesa. A língua portuguesa que se está a transformar na imagem falada de um país destruído. E se queremos realmente que os nossos filhos amanhã não se envergonhem de nós, comecemos já hoje por amar, por falar e por escrever a nossa língua como ontem a amaram, a falaram e a escreveram todos aqueles que a difundiram por todo o mundo e no-la legaram para sempre.
António Leite da Costa
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