Páscoa no Minho
Privilégio de quem atingiu a idade das memórias é poder repetir-se, sem que ninguém leve a mal.
Torno portanto a um postal já antigo, movido pela quadra pascal e por um gosto especial pelo poema que dou de presente aos leitores.
Associando-me à edição pela INCM dos dois volumes da obra poética de Couto Viana, passo a transcrever alguns dos seus versos, dos que pessoalmente me tocam mais. O poema que segue sempre o vi como um dos mais belos e perfeitos que conheço. Curiosamente, o autor nunca o incluiu nas suas antologias. Chamo a atenção do leitor para a alegre melodia da sua sonoridade, e para o colorido ingénuo da aguarela. Música e pintura, num todo harmonioso e único.
Os mais atentos hão-de lembrar-se de um quadro famoso de Sarah Afonso, “A Procissão”, e também dos versos célebres que António Lopes Ribeiro lhe dedicou (ao quadro, geralmente passa despercebido esse pormenor de os versos serem dedicados ao quadro, chamam-se mesmo “A procissão de Sarah Afonso”, e não a uma cena da vida a que António Lopes Ribeiro tenha assistido - este era aliás um citadino sem vivências rurais). Ninguém há que não tenha no ouvido a voz de João Villaret declamando “A procissão”...
A coincidência das imagens não representa um acaso: Sarah Afonso era conterrânea de Couto Viana, e inclusivamente amiga de infância e companheira de colégio da mãe do poeta. Tinham nos olhos as mesmas imagens. Eis a Páscoa no Minho, segundo Couto Viana.
Páscoa
É tempo de Páscoa no Minho florido.
Já se ouvem os trinos dos sinos festeiros
Na igreja vestida de branco vestido,
Entre o verde manso dos altos pinheiros.
Caminhos de aldeia, que o funcho recobre,
Esperam, cheirosos, que passe o compasso
À casa do rico, cabana do pobre...
Já voam foguetes e pombas no espaço.
Lá vêm dois meninos, com opas vermelhas,
Tocando a sineta. Logo atrás, o abade
Já trôpego e lento. (As pernas são velhas?
Mas no seu sorriso tudo é mocidade.)
Com que unção o moço sacristão, nos braços,
Traz a cruz de prata que Jesus cativa,
Para ser beijada! Enfeitam-na laços
De fitas de seda e uma rosa viva.
Um outro, ajoujado ao peso das prendas
(Não há quem não tenha seu pouco pra dar...)
Traz, num largo cesto de nevadas rendas,
Os ovos, o açúcar e os pães do folar.
Mais um outro, ainda, de hissope e caldeira
Cheia de água benta, abre um guarda-sol.
Seguem-nos, e alegram céus e terra inteira,
Estrondos de bombos e gaitas de fol.
Haverá visita mais honrosa e bela?
Famílias ajoelham. A cruz é beijada.
(Pratos de arroz-doce, com flores de canela,
Aguardam gulosos na mesa enfeitada.)
Santa Aleluia! Oh, festa maior!
Haverá mais bela e honrosa visita?
É tempo de Páscoa. O Minho está em flor.
Em cada alma pura Jesus ressuscita!
António Manuel Couto Viana
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