A VOCAÇÃO DA EUROPA
O espírito europeu é talvez a primeira manifestação histórica da fé e vontade de um futuro.
A humanidade europeia mal poderá dar o salto ousado que os mais confiantes esperam dela, se antes disso se não despir até ao seu ser nu, e se não regressar a sua verdadeira natureza. O entusiasmo que sinto por esta cura de nudez e verdade, a consciência de que ela é inevitável se quisermos abrir o caminho a um futuro digno, impele-me a exigir, perante todo o passado, a liberdade de pensamento. O futuro deve dominar sobre o passado, indicando-nos a nossa posição em face do que se passou. No entanto, devemos acautelar-nos contra o pecado mortal daqueles que dominaram o século XIX: da sua falta de consciência da responsabilidade. Eles esqueceram de se manter vigilantes no seu posto. Aquele que se deixa impelir pela corrente de um decorrer favorável dos acontecimentos, insensível perante os perigos e ameaças que espreitam ainda nas horas mais amenas, esse falha perante a responsabilidade com que foi incumbido. Hoje torna-se necessário despertar uma super-sensibilidade naqueles que podem senti-la.
Para a Europa não há nenhuma esperança, se o seu destino não for posto nas mãos de homens verdadeiramente à altura da época, que sintam o pulsar de todo o passado histórico, que reconheçam o actual nível da vida e detestem qualquer atitude arcaica e primitiva. Nós necessitamos da História em toda a sua vastidão, se lhe quisermos fugir e não recair nela.
Cada geração tem o seu próprio destino, a sua missão histórica. Nós pertencemos à nossa época só na medida em que somos capazes de aceitar as suas alternativas e combater numa das trincheiras abertas por ela, porquanto viver é, num sentido essencial, o alistamento sob as bandeiras e a decisão pela luta. Vivere militare est diz Séneca com o nobre gesto de um legionário.
Existem povos massa que se levantam resolutamente contra os povos grandes e criadores, contra aquela élite da estirpe humana que fez a História.
É ridículo que esta ou aquela pequena república se levante na ponta dos pés e ultraje a Europa do seu recanto do mundo, anunciando a sua retirada da História Mundial.
A retirada da Europa não teria importância, se houvesse alguém capaz de a substituir. Mas não existe ninguém. Nova Iorque e Moscovo não são nada de novo perante a Europa. São zonas à margem do domínio europeu que, desmembrando-se do tronco, perderam o seu significado.
Habituando-se o europeu a que ele não mande, então bastariam uma geração e meia para que o velho continente, e depois dele o mundo, se afunde em inércia moral, esterilidade e barbarismo geral. Só a consciência de dirigir e de se responsabilizar, e a disciplina que daí resulta, podem manter viva a alma do Ocidente. Ciência, Arte, Técnica e todo o resto só podem prosperar na atmosfera estimulante do sentimento de domínio. Se este falta, o europeu decairá cada vez mais. Os espíritos não terão por muito tempo aquela inquebrantável fé em si mesmos que os faz fortes, ousados e persistentes para a criação de grandes, novas ideias. Incapaz de acções de impulso criador, o europeu cairá no passado, no hábito e nos caminhos já percorridos.
Será, porém, tão certo que a Europa se encontre em decadência, renuncie ao domínio e abdique? Não será este aparente ocaso a crise salvadora que permita à Europa de se tornar verdadeiramente a Europa? Não foi a manifesta decadência das nações europeias uma necessidade inevitável, se um dia devesse surgir uma comunidade dos povos europeus que substituísse a multiplicidade da Europa pela sua verdadeira unidade?
Para os europeus irrompe agora a época em que a Europa pode tornar-se uma ideia nacional. E esta crença é muito menos utópica do que teria sido a profecia dalguns espanhóis no século XIX. Quanto mais o Estado nacional do Ocidente se mantiver fiel ao seu verdadeiro ser, tanto mais infalivelmente ele se desenvolverá num poderoso Estado continental.
Mal as nações do Ocidente se espalharam até às suas actuais fronteiras, logo à sua volta e por trás delas se tornou visível como que uma fundação da Europa. A Europa é a paisagem comum em que se movem todos os europeus desde a Renascença, e essa paisagem europeia são os próprios povos.
Enquanto se pelejam sobre uma leiva do solo, em muitos centros de outros estabelecia-se comércio com o inimigo, e trocavam-se ideias, formas de arte e princípios religiosos. O estrondo das batalhas foi, de certo modo, apenas um reposteiro, por detrás do qual com tanta mais tenacidade trabalhava o tear da paz, tecendo uma nas outras a vida das nações inimigas. Em cada geração nova cresce a identidade das almas ou, para nos exprimirmos com mais prudência e exactidão: espanhóis, alemães, italianos e franceses são e permanecem tão diferentes quanto se queira mas eles têm, no entanto, a mesma estrutura psíquica e, principalmente, são constituídos com o mesmo conteúdo, religião, ciência, direito e arte; valores sociais e eróticos são assuntos comuns. Mas estas são porém, as substâncias espirituais, das quais nós vivemos. A homogeneidade é, portanto, ainda mais perfeita do que se as almas fossem fundidas num mesmo molde.
Se fizermos hoje um balanço dos nossos bens espirituais - teorias e normas, desejos e suposições - verificar-se-á que a maior parte disso não deriva da nossa pátria, mas sim do fundo europeu comum. Em todos nós, o europeu sobrepassa de muito o alemão, espanhol, francês...
Se nós, como experiência, imaginássemos que tínhamos de viver meramente daquilo com que nós somos nacionais, se nós acaso experimentássemos despir o alemão médio de todos os costumes, pensamentos e sentimentos que ele tomou dos outros países do continente, ficaríamos surpreendidos como tal existência é impossível; quatro quintos dos nossos haveres são bens comuns europeus.
Só unicamente a decisão dos grupos de povos da Europa, uma comunidade, pode estimular de novo o pulso da Europa. O nosso continente tornará a adquirir a fé em si próprio e, como consequência natural, tornará a exigir novamente de si mesmo algo de grande.
A verdadeira situação da Europa, por consequência, poderia descrever-se da seguinte maneira: o seu longo e glorioso passado conduzia-a a um novo nível de vida em que tudo se engrandeceu; mas as suas circunstâncias estruturais, que se mantêm desde o passado, são anãs e dificultam a força de expansão da actualidade.
A Europa surgiu como estrutura de pequenas nações. Pensamentos e sentimentos nacionais foram, em certo sentido, as suas mais características descobertas. Agora, porém, ela vê-se forçada a dominar-se a si própria. Isto é obra do violento drama que se desenrolará nos anos futuros.
Ortega y Gasset
(in «Agora», n.º 346, 02.03.1968, págs. 6/8)
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