segunda-feira, maio 09, 2005

Vozes no deserto

A sagacidade e a acutilância de Nuno Rogeiro num artigo publicado o mais recente número da revista "Sábado" - "O deserto da travessia".
Pareceu-me quase tão bom como o meu texto sobre as "aporias" no funcionamento do nosso sistema político (ainda ninguém me apresentou solução...) ou o ensaio sobre "a direita do futuro" da autoria do Corcunda.
Não admira, o Nuno (também) é muito inteligente...
E como tem bom feitio e sentido de humor não leva a mal que eu copie para aqui o acervo patrimonial da "Sábado" (com toda as vénias devidas).

O DESERTO DA TRAVESSIA
Onde param as chamadas "direitas"? Umas estão no poder, como sempre, outras renderam-se sem luta, muitas aderiram à tradicional "maioria silenciosa", algumas enlouquceram, certas portam-se como bestas sadias (obrigado, Pessoa), e há até quem permaneça nos quartéis, isto é, nos partidos.
Os exércitos restantes do PSD e do PP, com bandeiras (e desculpas) esfarrapadas, rostos enegrecidos pela pólvora (dos foguetes alheios), depois de terem tentado uma retirada mais ou menos organizada, debaixo de fogo cerrado e emboscadas, franco atiradores e tortas de creme, granadas e rasteiras, atravessam o deserto. E o deserto atravessa-os.
O deserto de ideias. O deserto de convicções. 0 deserto de estratégias. 0 deserto de recursos. 0 deserto de palavras.
Pode dizer-se que ainda estamos no começo, mas o que é que as novas lideranças de PSD e PP trouxeram de verdadeiramente espantoso, não para convencer o pais, mas para convencer os próprios militantes?
Não basta dizer que o governo não governa, e que portanto nada há a criticar ou a opor. É uma brincadeira oratória estafada, e sem grandes consequências.
Não basta opor a "moderação" do presente ao "radicalismo" do passado. Em boa verdade, para usar a frase de Goldwater, a moderação na defesa da virtude não é um
bem, e o radicalismo no combate pelo bem não é um mal.
Não basta ajustar as contas com o "antigo regime". É preciso mostrar as contas do novo.
Marques Mendes apresentou um projecto ambicioso na forma (manter as câmaras actuais, e portanto ganhar mais do que o PS), mas ainda pouco definido no conteúdo. É preciso não esquecer que a última retumbante vitória autárquica do PSD se ficou tanto a dever à capacidade combativa de muitos candidatos (incluindo muitos que pertencem ao "passado" não Marques-Mendista, como Santana Lopes), como à rejeição global do Guterrismo.
0 PSD não pode desta vez contar com a muleta do "pântano". 0 Pais mobilizar-se-á menos contra Sócrates - que vive o tal estado de graça - do que contra os autarcas incompetentes, venais ou vazios.
É evidente que este governo precisa de nervos sólidos, muita cabeça e muita sorte, para passar este Verão incólume: a "paz social" é frágil, o calor aperta, a água escasseia, as florestas aí estão, desprotegidas.
À falta de uma catástrofe - que não alegraria ninguém bem formado - os partidos das "direitas" precisam de encontrar forças em si mesmos. Surgem aqui soluções diferentes: Marques Mendes rompe com o antecedente, e sofre lavagens públicas de roupa suja, enquanto que Ribeiro e Castro procura não tornar o PP numa coisa ainda mais pequena (tem feito tudo o que os livros mandam).
Um divide e expurga, para a seguir lucrar.
0 outro mantém e agrega, para mais tarde ter aliados na escalada do Himalaia.
São duas vias, mas o deserto é o mesmo.