segunda-feira, junho 20, 2005

Bagatelas para um massacre

O artigo de Nuno Rogeiro na última edição da Sábado:

O “arrastão” de Carcavelos tem alguma coisa a ver com a revolta agrária em França, ou com a cruzada holandesa para ter cidades em mãos indígenas, ou com a possível declaração da Catalunha e do país Basco como "Estados nacionais"? Sim, no sentido em que esta Europa está colada com cuspo.
Claro que as Pátrias possuem "particularidades", como as famílias. Têm as suas memórias, os pergaminhos respectivos, os amores e desamores de vida, os santos, mártires e protectores, as crenças e histórias, as pegadas dos povos, as arcas (com segredos) que arcam (mesmo nos degredos).
Claro que a "instabilidade social”, seja sob a forma de 500 (ou 40) energúmenos varrendo uma praia popular de Lisboa, ou debaixo da "mobilidade" de 1.6 milhões de portugueses que mudaram de emprego, desde que se anunciou a crise, é um dos preços a pagar por comunidades libertas de um Estado policial, onde se aceita o fluxo de pessoas e bens como uma extensão do Eu. Claro que em tudo há um "lado bom": o "arrastão" provocou uma reacção policial eficaz, quase imediata, não vista em muitos sítios do (primeiro) mundo, e a "mobilidade no emprego" mostra, paradoxalmente, que há soluções (talvez improvisadas, talvez instintivas, talvez provisórias, mas soluções) para a crise.
Não podemos, porém, menosprezar o que para aí anda, e o que aí vem.
Sociólogos brasileiros, como um Hélio Jaguaribe mais jovem, ou outros mais radicais, pintaram um dia as cores do Brasil possível: e se a ausência da classe média transformasse a Pátria num conjunto de palácios onde viviam entrincheirados os ricos, com as ruas pejadas de massas desapossadas, ao assalto da prosperidade e patinando na anarquia?
A deterioração das "classes médias" europeias, ou a sua quase "proletarização", sobretudo em Portugal, podem levar a esse pesadelo de apocalipse? Há quem aposte que sim.
Por outro lado, a "desintegração" entre comunidades "autóctones" e imigrantes, a permanência de largas ilhas de delinquência, que crescem pela facilidade do lucro no crime, a associação simbólica do estrangeiro e do facínora, irão tornar mais viável, e até "natural", mecanismos de autotutela, desde a compra de armas de defesa (ligeiras e pesadas), à organização de "milícias populares".
Todos os grupos ameaçados sejam lobos ou homens encontrarão formas de agredir os agressores, e de esquecer as virtudes da fé, da esperança e da caridade.
Se a tudo isto associarmos uma "classe política" ineficaz, palavrosa, sem convicções, olhada como bode expiatório conveniente, ficamos com a receita para um desastre.
Não vale a pena fingir que é de outro modo, nem que tudo se resume a artigos de uma Constituição defunta.