sábado, junho 11, 2005

PORTUGAL, S.A.R.L.

No final do ano de 1980 vivia-se a formação do governo Balsemão. Tinha desaparecido Sá Carneiro, o presidente era Eanes, as personalidades mais destacadas no novo executivo em formação eram Balsemão e Freitas. Foi o governo da Quinta da Marinha, que ainda assim, apesar da homogeneidade visível brevemente se desentendeu.
Manuel Maria Múrias publicou então o artigo que transcrevo a seguir, por ao lê-lo agora se me apresentar bem actual em muitas das observações. Infelizmente.

Por um daqueles esquecimentos históricos muito vulgares nos homens de génio, Marx esqueceu-se de nos dar uma definição rigorosa de classe social. Ao teorizar a luta de classes considerou como um dado, cientificamente caracterizado a priori, o conceito de classe: a partir daí nem os marxistas conseguiram entender-se sobre o termo — tudo o que se tem dito, e escrito, e discutido acerca do assunto pouco tem adiantado.
Já agora até os sociólogos entendem que a famosa divisão da sociedade entre proletários e burgueses é redondamente falsa. A vida social é muito mais complexa do que isso; as classes sociais (se é que existem) dividem-se e subdividem-se em hierarquias até ao infinito, tomando formas diversas conforme as diversas organizações dos poderes, assumindo-se com várias características consoante as diferentes latitudes. Falar de uma classe de explorados e outra de exploradores é hoje considerado estulto à luz da sociologia. A sociedade estrutura-se espontânea e naturalmente em grupos mais ou menos fechados com interesses próximos e comuns; os vínculos aglutinadores nascem, em cima, através, através de grandes realidades consuetudinárias (como a Língua, a Religião, a Paisagem Maternal e o próprio Clima) e consolidam-se, em baixo, pelo sexo, pela maneira de viver, pela comunidade dos valores morais, pelo grau comparável de cultura ou, pelo menos, (como diz Gonnard) de cultura orientada na mesma direcção — e pela mesma maneira de viver em sociedade. Lucaks, pensador marxista, afirmava que não há classe social sem consciência de classe. Desomogeneizada, a sociedade apresenta-se-nos concretamente como uma vasta teia de classes que se interpenetram; a existência de intelectuais proletaróides que renegam o seu burguesismo é tão vulgar como a existência de proletários intelectualóides que recusam o proletarismo. As classes sociais surgem do chão como os cogumelos na relva; a organização política do poder e o modelo de projecto económico têm um papel criador dominante no teor das malhas que unem os homens.
Dizia Tarde que as pessoas que se casam entre si, que comem à mesma mesa sem sentirem repugnância mútua, que se conformam aos mesmos padrões sociais e que têm a mesma ideia sobre as distinções de classe constituem uma classe socialmente homogénea a despeito das suas diferenças ocupacionais. Há uma classe governante e uma grande classe governada. Destruindo os estamentos a revolução democrática bipolarizou inconscientemente a vida social; criou uma classe política determinada com rigor quase geométrico; separou a Nação do Estado, caracterizando este como um aparelho burocrático e hierarquizado, fenomenologicamente igual em Portugal e na China. Há uma classe política.
O que, neste momento, se passa neste país para a formação do novo governo é negócio que só interessa à classe política. O chamado povo soberano tem a consciência plena de que não pode, nem deve interferir no assunto. Ao dar a representação política a um partido, abdicou da sua soberania; fechada em si como um mexilhão na casca, a classe política governa-nos e governa-se dentro de regras próprias, incompreensíveis para o comum dos mortais.
O governo de Balsemão deve ser encarado, por isso mesmo, não como o governo dos portugueses (quer dizer; escolhido pelos portugueses) mas sim como o governo da classe política. Foi escolhido e organizado ao sabor de interesses muito restritos de uma classe muito restrita; é o produto acabado da conjugação desses interesses dentro do cínico ditame de que a política é a arte do possível.
Pelo que se tem visto o Dr. Francisco Balsemão tem orientado a formação do seu governo condicionando-a a meia dúzia de determinantes fundamentais: — em primeiro lugar tratou de defender os interesses pessoais do pessoal do Partido Social Democrata; depois tratou de acautelar os interesses da Aliança Democrática, prevendo o seu desintegrar; a seguir olhou cautelosamente pelo futuro da partidocracia que, além dos partidos aliancistas, também garante a existência de todos os outros partidos (incluindo o comunista), logo após não deixou de se lembrar dos amigos e colegas de escritório; por fim procurou gerar um clima de eficácia operacional, limando os pontos de fricção latentes com o Presidente da República. O interesse nacional foi relegado para a cauda das preocupações imediatas. Com a sua experiência de gestor o Dr. Balsemão futurou o próximo Conselho de Ministros como o Conselho de Administração de qualquer sociedade anónima. O projecto da Aliança Democrática foi objectivado em termos exclusivamente económicos; o seu governo, por conseguinte, pretende gerir este país com lucro. Governar é outra coisa.
A ideia não é de hoje nem de ontem — é de há muitos anos. Despolitizar o político tem sido o sonho de quantos tecnocratas têm passado por S. Bento desde Salazar. Sendo o país o conglomerado de pessoas economicamente necessitadas, o seu governo deve ter como alvo essencial a satisfação dessas mesmas necessidades. O marxismo define um modelo de sociedade anónima, o capitalismo define outro. Para existir com felicidade, deve bastar a Portugal manter um nível de vida suficientemente alto; para não sentir constrangimentos patrióticos deve poder equiparar-se ao nível de consumos dos mais gastadores países da Europa.
Aqui há uns anos, no «Expresso» de que foi director o Dr. Balsemão, escrevia-se que o maior erro político da História de Portugal tinha sido a revolução de 1640. Explicava-se naturalmente a afirmação pelo tempo histórico já decorrido: — se tivéssemos cedido à ânsia centralizadora do Conde-Duque de Olivares, se não tivéssemos seguido o pendão irredentista dum grande senhor alentejano, nós agora seríamos como a Navarra, como a Galiza, como a Catalunha, ou como os Andaluces, maior província de Castela — e vivíamos abastadamente no seu grande espaço político-económico, parte maior duma grande potência europeia. Não seríamos portugueses, mas seríamos ricos. Um ponto de vista económico adaptado à soberania, minimiza a soberania; sendo o país apenas o conglomerado duns milhões de pessoas economicamente necessitadas, se a satisfação dessas necessidades passa pela perda da soberania — faz-se um bom negócio, cumprindo-se um mandato. O que o povo quer é viver; se para viver melhor for preciso transferir o capital para Madrid (ou para Estrasburgo) que se transfira para aí o capital.
Longe de nós estarmos aqui a insinuar que o governo do Dr. Balsemão tem como projecto escondido a União Ibérica, Limitamo-nos a concatenar os factos — e a tentar compreender porque tendo de organizar um Conselho de Ministros o Primeiro-Ministro indigitado parece pretender constituir somente um Conselho de Gestão. No fundo o que separa o projecto político da Aliança Democrática do projecto comunista é a forma de organizar a economia: onde um pretende sociedades anónimas, pretende o outro Unidades Colectivas de Produção ou Empresas Públicas. Os valores éticos subjacentes ao conceito de Nação como mais alguma coisa que um mero aglomerado de pessoas economicamente necessitadas, desvanece-se nesses projectos. Aos gestores comunistas (muito maus) que nos governaram nos primeiros anos da revolução sucedem-se os gestores capitalistas (menos maus) nascidos na contra-revolução novembrista.
Natural é, portanto, que personalidades cujas preocupações não são apenas económicas, se afastem do novo governo. Apesar de menormente, Sá Carneiro pretendia ser um estadista; o Dr. Francisco Balsemão deseja somente ser o Presidente do Conselho de Administração de Portugal S.A.R.L.
Que o Conselho Fiscal o apoie e ele seja aclamado em Assembleia Geral são os nossos votos sinceros.

(In A Rua, n.º 237, pág. 16, 26.12.1980)