AS CAUSAS E OS EFEITOS
Não, não se trata de uma meditação filosófica sobre o tão discutido princípio da causalidade. Trata-se, unicamente, de uma série de comezinhas reflexões em torno de realidades políticas hodiernas.
Ainda não há muito tempo celebrou-se, com forte aparato, o aniversário do 5 de Outubro. No entanto, por entre os tropos entusiásticos da oratória comemorativa, não deixaram de surgir, aqui e além, discretas alusões à inaptidão e incapacidade dos dirigentes da I República, em boa parte responsáveis pela reacção antidemocrática posterior ao 28 de Maio. É indiscutível, de certo, que a conjuntura não se mostrava nada ridente no ano da graça de 1926, caminhando-se, então, alegremente em direcção ao abismo. Simplesmente a situação não é mais ridente hoje em dia do que ontem, escutando-se da parte dos nossos bem amados desgovernantes - exactamente os que lançam remoques sobre os seus predecessores - brados angustiosos de que é preciso reconstruir o país, que estamos à beira do colapso económico, que Portugal atravessa um dos momentos mais graves da sua existência, etc., etc. E no próprio dia em que foram derramados croquetes de retórica em cima dos "heróis da Rotunda", chegou-se ao ponto de se juntar, no texto do mesmo discurso, à referência aos erros do passado uma incisiva apreciação do lastimável panorama do presente, como se se pretendesse, ainda que involuntariamente, fazer ressaltar, perante os espíritos reflexivos, o paralelismo flagrante entre as duas calamitosas experiências republicanas.
É claro que entre ambas, todavia, uma diferença de vulto se nota. Sejam quais forem os malefícios que lhes podem ser imputados, os homens da I República tinham, de uma maneira geral, o sentido do patriotismo e não lhes passava pela cabeça entregar, de mão beijada, territórios onde a soberania portuguesa imperasse há centenas de anos. Neste plano verificou-se um nítido progresso. Foi por entre gritos de júbilo e satisfação que, a seguir à gloriosa revolução dos cravos, se arreou a bandeira das quinas por toda a parte onde ela flutuava, com excepção do estreito rectângulo ibérico (nos Açores e na Madeira, ai de nós, ela já está a meia haste), sendo principais protagonistas do extraordinário feito precisamente aqueles que, por juramento solene e vocação assumida, deveriam ser os mais intransigentes defensores das fronteiras nacionais.
O conselheiro Melo Antunes explicou, sabiamente, que, sem aquilo a que ele chama descolonização, não teríamos visto raiar o Sol da democracia. Por isso tínhamos a obrigação de estar tremendamente satisfeitos com a entrega do Ultramar. Para os expoentes da mentalidade contemporânea jogar pela borda fora séculos de história e as melhores perspectivas de futuro, mutilar a nação de maneira a transformá-la num inviável recanto da península são, portanto, eventos brilhantíssimos que nos trouxeram o admirável presente do triunfo da ideologia partidocrática - sem tirar nem pôr, a mais insubsistente das ideologias.
Supomos que as personalidades marcantes da I República não pensavam de tão sublime modo, embora vejamos, com repugnância, alguns mumificados sobreviventes desse período aparecer no tablado, impantes de satisfação, a exibir a mais obscena alegria por verem, de novo, entronizados os dogmas de 89, sem uma palavra sequer de lamento e dor pela redução da pátria a uma pobre nesga de terra no Ocidente da Europa. De qualquer forma, cremos que se trata de excepções e que a maioria dos seus coetâneos, se vivos, não assumiriam idênticas atitudes, recusando-se a repudiar declarações explícitas (entre as quais avultam as do general Norton de Matos, comicamente homenageado por uns tantos que, a acatarem-se as admoestações desse general, mereciam ser banidos da nossa convivência, dada a forma como se comportaram perante a África e a Ásia portuguesas), a fechar os olhos face ao espectáculo alucinante de uma nacionalidade gloriosa reduzida repentinamente à insignificância e a cerrar os ouvidos aos clamores dos milhares e milhares de vítimas do monstruoso processo em curso, só pelo prazer de contemplar, outra vez, a entronização de certos princípios doutrinários (aliás falsos).
Em todo o caso, à parte a desaparição do sentimento de dignidade patriótica, em especial entre os que deviam considerá-lo como uma espécie de depósito sagrado de que fossem os guardiães, as similitudes entre a primeira e a segunda repúblicas são notórias e flagrantes.
Numa e noutra desabrocharam os golpismos militares, o bombismo desenfreado, a indisciplina cívica, os desequilíbrios orçamentais, a exacerbação dos conflitos sociais, o abaixamento do nível do ensino, as ilusões iberistas, a incompetência administrativa, a fúria das disputas partidárias. Numa o presidente do Conselho bradou que o país estava a saque, na outra o chefe de governo advertiu, solenemente, que nos encontrávamos a atravessar uma das crises da maior gravidade possível. Em resumo, numa e noutra, os grandes triunfadores foram a desordem, a confusão e o caos.
Ora o que é que explica fracassos tão inteiramente semelhantes? Iremos repetir o lugar comum, que a culpa é dos homens e não do sistema que é excelente? Impossível! Com efeito, dissipada a longa noite fascista, alçapremaram se ao poder as individualidades mais inteligentes, mais virtuosas, mais brilhantes, mais informadas, mais talentosas, mais sábias desta terra lusitana que tinham, ainda, a seu favor as lições dos antecessores para evitarem recair em dislates, loucuras, ingenuidades análogas.
Se, apesar do imenso génio dos próceres que nos desgovernam e da sua indesmentível boa vontade em fugir à repetição dos lapsos de outrora, as coisas não correm pelo melhor, antes pelo pior, é óbvio que não lhes podemos atribuir a responsabilidade pessoal de tão lastimável facto. Mas não sendo lícito responsabilizá-los, o que está na raiz das desgraças que nos afligem? Obviamente o regime que eles restabeleceram e servem. Tal regime produziu frutos amargos durante os dezasseis anos posteriores a 1910. Restaurado e aperfeiçoado, produz frutos amaríssimos de 25 de Abril de 1974 a Novembro de 1976. É que as mesmas causas produzem os mesmos efeitos. De certo, uma comunidade política que nade em riqueza pode dar-se ao luxo das greves constantes, das reivindicações laborais absurdas, sem se arruinar imediatamente, conforme sucedeu entre nós. Nem por isso, contudo, deixa de ir empobrecendo, posto que imperceptivelmente. Também uma sociedade em que os seus membros estejam de acordo no fundamental, sejam de temperamento gregário e obediente, e não conheçam, desde há numerosas gerações, guerras civis, pode dar-se ao luxo das divisões, sem tombar, instantaneamente, na anarquia, consoante aconteceu connosco. Nem, por isso, no entanto, deixa de encerrar em si um fermento de dissolução que está a miná-la sub-repticiamente.
Atenuadas ou parcialmente contrariadas por outros factores, as causas não deixam de produzir, inflexivelmente, os efeitos que lhes são inerentes. De um mau regime não é possível que resultem a paz, a ordem e a prosperidade; leve ou não longo tempo, a sua índole deletéria acabará, sempre, por vir à tona. Às leis irrevogáveis da lógica ninguém consegue escapar. É inútil imaginar que se obtém a concórdia entre cidadãos pregando a luta de classes, unidade social legitimando a fragmentação de um povo em grupos hostis, o acatamento da autoridade tornando-a dependente daqueles a quem se dirige. As consequências desejadas são opostas às premissas estabelecidas, logo a partir destas jamais se alcançarão aquelas.
Só os tolos protestarão com espanto contra o partidarismo que reine na administração após terem instaurado uma partidocracia (ou uma quase partidocracia); estranharão, indignados, que do cultivo das divergências de opinião e de conduta não derivem a harmonia e a união, e lastimarão, inconsoláveis, o ódio entre compatriotas depois de, a torto e a direito, a propósito e a despropósito, os terem cindido em exploradores e explorados. Só os tolos!
Infelizmente, porém, são os tolos o que mais abunda neste mundo de Cristo.
António José de Brito
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