terça-feira, julho 26, 2005

AS DUAS ENXADAS

Antes diríamos picareta e enxada. Na província, nestas manhãs de geada polvilhada sobre a couve troncha, vê-se o jornaleiro rumar aos campos armado com os dois utensílios indispensáveis. A picareta é para desmoronar os combros aleivosos, derruir a parede ameaçada, esterroar os mouchões endurecidos. A enxada leveira é para alisar, ordenar as regueiras, compor o semendo. Quem nunca saiu de Lisboa mal pode compreender como essa dupla faina que poderíamos qualificar de crítica e construtiva requer duas enxadas, com diferente folha de ferro. Mas se eu lhe disser que nos jornais de boa tinta essas duas enxadas são por igual imprescindíveis, o meu leitor é capaz de se encrespar em estranheza e arguições em contra...
Em tempos como os que decorrem no nosso país, a enxada crítica, a picareta vibram-na bons atlantes que se não compadecem com mentiras nem com receios tanto mais supérfluos quanto o princípio democrático é avançado avondo e não deve ser reservado a meia dúzia de problemáticos arcontes. Doa a quem doer, dizem os possessos da verdade! E de tudo fazem azorrague para expulsar vendilhões, para desenlapar escribas e fariseus que facilmente se arregimentam, prometem obra primas e se incensam uns aos outros num compadrio que não tem chancela na história pregressa tão acarvoada de censuras, dizem.
Notou-se, há tempos a esta parte, uma baixa da produção literária. A gramática flagelada em discursos tribunícios, sai mal ferida dos artigos crismados de progressistas e há por aí gente tão escandalizada que se pergunta se o homem de S. Miguel de Seide, vulgo Camilo, também foi saneado, na esteira de um Luís de Camões. Este, após o saneamento, determinou desamarrar-se do "tronco" e fazer as pazes com Gonçalo Borges, que ele imortalizou com uns apalpões, e passar essas carícias para os saneadores, uns alarves sinistrados nas congostas da gramática e da prosódia. As páginas literárias pós abrilinas lembram as territas amarelentas de que os agrícolas praguejam.
Estávamos, porém, a dizer que a enxada crítica não tem ficado atrás da porta. Sobretudo na imprensa de província e nos hebdomadários o espírito de Nicolau Tolentino e de Camilo não dormita... Convenhamos, todavia, em que o emprego indefeso dessa enxada se acompanha de ordinário de uma plangência incómoda. Nem sempre se pode rir do que se fustiga. Quando se vê espezinhada a História de Portugal, ou omitida, silenciada; quando se vê o sequestro sistemático para os sótãos da melhor literatura portuguesa, para ser substituída, nas selectas educacionais, por trechos de asneiras bafientas de fulanos nascidos em divórcio nativo com o tinteiro e por discursos de revolucionários de fora parte; quando se ouve denegrir toda a acção do nosso passado e se acendem fogueiras sanjoaninas em torno dos gloriosos de 1910, esses que eram tão amigos da liberdade que saíam das furnas maçónicas para medirem, facialmente, aqueles a quem expulsavam depois de lhes terem larapiado os parcos haveres. E não falta aí oportunista devoto que vem declarar que esses algarismos, à parte alguns desmandos (oh! oh! pequenos, não?), foram purificadores da Igreja verdadeira! Com pouco mais de generosidade punham-nos nos altares!
A enxada critica tem muito que surribar.
Importa porém, a nível de imprensa, lançar mão da outra, da enxada construtiva. Sobretudo não deixar que a lamentação se estenda a toda a folha. O lavrador da nossa província, depois de cortar silvas e tojos, de arrumar pedregulhos, de catar as gramas invasoras, é com gosto que horteja uma cimeira de campo, e faz apetite ao jantarinho com lida mais directamente frutífera. Escorra a analogia da leiva campestre para a leiva da letra de forma!
Nos finais do século passado, a grande geração literária de setenta, e a outra que se lhe seguiu, a de Fialho, ergueram a prumo a primeira enxada crítica e riram e assobiaram, sarcásticos, no sarçal. Mas sobre o tarde reconheceram que a faina construtiva, mais difícil, ficara maneiras desatendida. Hoje, em Portugal, requer-se decisão para atacar quanto ameaça a vida pública, o povo inerme, a vida familiar, a liberdade do espírito. Anda aí no ar um ridículo espantalho, tanto mais ridículo quanto é arvorado por mãos decrépitas: é o espantalho do reaccionarismo! Quando a voz do bom senso, da justiça, do bom humor, da aritmética, da gramática, do Curvo Semedo ou do inocente Caldas Aulete se faz ouvir, vem logo o tapume: É reaccionário, é fascista! Felizmente já hoje toda a gente começa a gargalhar de tal espantalho que se volve tão inoperante como o outro que defende os milhos da pardalada desrespeitosa que enche o papo e procura alívio!
Invoquemos o espírito de Ariel, o espírito da harmonia construtiva e saibamos transformar a irritação contra os adversários num ímpeto de construção que nos comprometa na acção e no amor. As duas enxadas ao ombro, para o que der e vier...

João Maia

2 Comments:

At 6:55 da tarde, Blogger vs said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

 
At 7:10 da tarde, Blogger vs said...

"Invoquemos o espírito de Ariel..."

Assim é que é falar! :)

 

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