sábado, julho 16, 2005

The eye of the needle

Escreve hoje Eurico de Barros no Diário de Notícias, na sua habitual crónica:

Inimigo? Qual inimigo?
Em 1982, Clint Eastwood realizou e interpretou um filme chamado Firefox, onde faz um piloto da Força Aérea que se infiltra na URSS para roubar o protótipo de um novo e avançado caça supersónico soviético. Em 1982 ainda havia uma superpotência totalitária, uma ameaça militar para o Ocidente democrático e um muro sinistro em Berlim, e Hollywood podia fazer filmes de aventuras anticomunistas como Firefox sem se preocupar com protestos diplomáticos ou grupos de pressão minoritários - só com a bílis dos críticos e uma bilheteira raquítica.
Este ano, vai estrear-se nos EUA um filme chamado Stealth, sobre um grupo de pilotos da Marinha que tem que destruir um novo e avançado caça supersónico americano controlado por um programa de computador, que se "revolta" e ameaça recriar a catástrofe de 11 de Setembro. Em 2005, já não há nenhuma superpotência totalitária, o Muro de Berlim foi vendido aos bocadinhos aos turistas e o Ocidente cada vez mais securitário e menos democrático é ameaçado por um borrão com tentáculos longos e difusos chamado "terrorismo".
Mas Hollywood tem tanto medo de ofender seja quem for, de melindrar quem quer que seja, que os filmes de acção já não são "anti" nada. E os inimigos de serviço, que ainda há pouco eram neonazis gelados, antigos comunistas virados criminosos amorais ou fanáticos árabes mal barbeados, estão agora reduzidos, como em Stealth, a software desobediente.
Melhor ou pior, sempre tinha havido alguma sintonia entre Hollywood e o público americano sobre quem era o inimigo. Os alemães e os japoneses na II Guerra Mundial, mesmo que caricaturados até à animalização; os comunistas (e os extraterrestres dos discos voadores), no pós-guerra e na Guerra Fria; o próprio Governo dos EUA, nos anos de Watergate e da ressaca da derrota no Vietname. Actualmente, enquanto se discute nos EUA o perigo do terrorismo islâmico, os erros da política do Médio Oriente, as consequências da invasão do Iraque ou a influência descarada de Israel na Casa Branca, Hollywood tapa os ouvidos, fecha os olhos e faz um filme onde o vilão é um avião vazio pilotado por um computador psicopata. Só falta mesmo que os informáticos se sintam ofendidos por Stealth
.

Eu acrescento que ainda pode recorrer-se a caminhos já antes trilhados por formidáveis filmes da série B: por exemplo, "a ameaça dos tomates assassinos", "a praga das minhocas devoradoras" ou "a invasão dos piolhos-vampiros". Não se ofende ninguém, e as entidades visadas não se queixam.