sexta-feira, julho 15, 2005

A terra dos eslavos do sul

A crença que esteve na origem da invenção da Jugoslávia é essencialmente a convicção ingénua de que a identidade genética basta para cimentar uma comunidade política.
Acreditava-se nesse tempo do final da Primeira Guerra Mundial, em que desabavam impérios, que a melhor forma de reorganizar a vasta região dos Balcãs em que desde há muitos séculos estavam estabelecidos diversos povos pertencentes à grande família eslava seria reconhecer a sua unidade fundamental e traduzir esse facto numa unidade política.
Para quem acredita que a nação não é uma criação humana, nem uma realidade histórica, mas um dado da natureza, a conclusão parecia perfeita.
Com efeito, sérvios, croatas, eslovenos, macedónios, bósnios, montenegrinos, todos são da mesma raça, e do mesmo ramo (os eslavos meridionais). Só a história, a religião, a cultura, as fronteiras, as diversas influências exteriores, tinham ao longo do tempo separado esses povos.
Para o materialismo rácico, a consanguinidade bastaria para assegurar a manifestação da tal unidade fundamental. Concretizada a unificação política logo o facto natural se imporia, contra todos os artificialismos divisores.
E no caso até a língua contribuía para unir esses grupos humanos, visto que o servo-croata lhes era comum (o esloveno em pouco se diferencia, e era residual no conjunto).
A primeira tentativa de unificação política dá-se então em 1918, quando o consenso internacional fez nascer o “Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos”, em torno da monarquia sérvia.
A partir de 1929 passou a denominar-se “Reino da Jugoslávia” (“Jugoslavija” é precisamente a palavra que nas línguas eslavas meridionais significa “terra dos eslavos do sul”).
A precária unidade durou pouco mais de vinte anos: por volta de 1941 tudo rebentou na explosão de guerras civis de extrema violência e crueldade (sérvios contra croatas, comunistas contra anticomunistas).
Porém, finda a Segunda Guerra Mundial o novo poder emergente era o comunismo triunfante.
E para o marxismo, como decorre da visão do materialismo dialéctico, a divisão daqueles povos situa-se apenas num plano que se reduz à “super-estrutura”. Mude-se a “infra-estrutura” económica e o problema estará resolvido por si.
Nasceu então a Jugoslávia comunista, que a partir de 1945 se foi chamando sucessivamente Jugoslávia Democrática Federal, República Popular Federal da Jugoslávia, República Socialista Federal da Jugoslávia.
Durante as décadas seguintes nenhum método foi esquecido para assegurar a unificação dos espíritos. Tudo se fez para apagar dos homens os laços que os faziam identificar-se com outras comunidades de origem; as religiões, já que uns eram católicos, outros ortodoxos, outros muçulmanos, as tradições próprias, que faziam de uns eslovenos e de outros croatas, sérvios, bósnios, macedónios ou montenegrinos, as diferenças culturais resultantes das experiências históricas, uns mais ligados ao mundo austro-húngaro, ou à Itália, outros mais afectos aos irmãos eslavos mais a Norte ou Oriente, outros ainda decisivamente marcados pela ocupação turca.
O que é certo é que o final da experiência veio a ocorrer já nos nossos dias e é lembrado por todos: o edifício político laboriosamente construído e teimosamente mantido de pé, à custa de repressão impiedosa, ruiu fragorosamente.
De novo guerras civis sangrentas assolaram a terra dos eslavos do sul. A consanguinidade não fez com que se sentissem irmãos, e nem a unidade política os fez sentir-se integrados numa unidade de destino.
A Eslovénia, a Croácia, a Macedónia, a Bósnia-Herzegovina, a Sérvia, o Montenegro, seguiram os seus destinos próprios, que cada um reclamou ferozmente para si.
O que falhou? Não foi certamente a falta de “identidade étnica”. Dentro das fronteiras políticas do estado que se chamou Jugoslávia só tinham ficado umas franjas de albaneses e de húngaros, e marginalmente de ciganos, que não faziam parte da família eslava, concretamente do ramo designado por “eslavos do sul”.
Pelo que se viu isso não chegou. Nunca chegou a existir uma “nação jugoslava”, apesar dos elementos reunidos para isso (um poder político unificador, um território próprio, uma população notavelmente homogénea do ponto de vista genético).
Devia falar-se mais nisto, e estudar-se mais esta experiência. Não falta quem observe que a ilusão da “Nação-Europa” não passa duma reedição em ponto grande do que foi o equívoco da “Nação Jugoslava”.

8 Comments:

At 5:51 da tarde, Blogger Luís Bonifácio said...

Não esquecer o dedinho da Alemanha, sobretudo no caso da croácia.
A alemnha nunca digeriu bem a derrota na Jugoslávia, para além do facto de ter acolhido no após guerra os refugiados Ustachis, que 50 anos mais tarde aproveitaram, e bem, a necessidade que a alemanha tinha de desfazer-se do arsenal da Ex-RDA.

 
At 7:20 da tarde, Blogger Filipe Tirapicos said...

Este artigo deu-me vontade de ir ver o "Gato Preto, Gato Branco" do Kusturica. Vá-se lá saber porquê.

Muito pertinente. Parabéns.

 
At 7:20 da tarde, Blogger Rodrigo N.P. said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

 
At 7:24 da tarde, Blogger Rodrigo N.P. said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

 
At 7:31 da tarde, Blogger Rodrigo N.P. said...

Aproveitando a sugestão e como ler não faz mal aconselha-se a leitura do livro de Alexandre del Valle "Guerras contra a Europa", talvez seja útil para se compreender melhor o desmembramento da ex-jugoslávia.

Quanto à questão genética, se uma nação fosse meramente uma questão de raça toda a Europa seria a mesma nação, não é apenas a raça nem é apenas a etnia, não é apenas mas é também!

Uma nação é uma convergência de identidade racial, histórica, linguística e cultural.Não é uma entidade completa sem um destes factores.É pela homogeneidade integral que a Sérvia partilha, ou seja, todos os factores enumerados, que independenemtente do Estado onde esteja incluída sobrevive como nação e o mesmo serve para os outros casos.

Isto significa que não basta ser "eslavo do sul" mas significa também que se nessas nações não existisse essa homogeneidade étnica não sobreviviriam ao longo do tempo, para ser mais claro, não existisse homogeneidade étnica na Eslovénia ou na Croácia e essas realidades já teriam desaparecido equanto nações.

Também aqui se vê que não é um Estado que faz uma nação,como é óbvio.Entretanto talvez fosse interessante entender que a identidade étnica é uma expressão da evolução histórica de um povo, já vai sendo tempo de compreender algo tão elementar quanto isto.

 
At 3:20 da tarde, Blogger Orlando Braga said...

A política nada mais faz do que se alimentar de velhos pesadelos.

 
At 3:35 da manhã, Blogger vs said...

Agradeça aos teutões...aquelas bestas

 
At 11:56 da tarde, Anonymous Anónimo said...

«não é apenas mas é também!»

Está tudo dito! É exactamente isto. Admira-me como é que uma pessoa inteligente se recusa a entender isto e se esforça tanto por distorcer os argumentos adversários.

NC

 

Enviar um comentário

<< Home