Vamos ver-nos gregos
Já não é a primeira vez que um artigo do conhecido médico e professor universitário Manuel Antunes me pareceu suficientemente importante para o transcrever na íntegra.
Vejo-me obrigado a reincidir, e a sublinhar a simplicidade e a evidência dos conceitos expostos por Manuel Antunes - na razão directa da sua importância.
Pilhado do "Diário de Notícias", aqui vai o "Vamos ver-nos gregos".
Há uns meses, após uma visita que fizera à Grécia, escrevi neste jornal, num artigo com este mesmo título, que os portugueses estavam a caminho de ser ultrapassados pelos últimos da Europa. Entretanto, com o alargamento da UE, já não somos outra vez os últimos, mas passámos do 15.º lugar para o 19.º ou 20.º, o que não é certamente nada de que nos devamos orgulhar.
Referia eu, então, que não via como se pudesse melhorar esta situação "a não ser que tomemos rapidamente a consciência de que a cada um de nós, e não apenas aos que nos governam, compete fazer o que cada um possa para melhorar a sua postura de cidadania... A começar pela educação".
Penso que isto se justifica cada vez mais e, de facto, a inconsciência do nosso atraso geralmente não nos permite estar despertos para o adiantamento dos outros. Daí a aparente incapacidade dos portugueses em se superarem para produzir melhor e mais racionalmente.
Desde então, o País tem vindo lentamente, com aparente surpresa, ainda que não de todos, a aperceber-se de que já não está de tanga, como dizia um nosso ex-primeiro-ministro, nem de fio dental, como disse alguém de quem não me lembro, mas completamente nu. Como na velha história do rei, provavelmente sempre tivemos esta realidade à vista, mas só agora é que nos vamos apercebendo dela.
Recentemente, vi e ouvi uma constelação de estrelas economistas (ou economistas-estrelas, o que não é bem a mesma coisa) discutir, num bem conhecido e popular espaço de debate televisivo, as causas do descalabro da nossa economia e das contas públicas. Aumentar as receitas, propõem uns, diminuir as despesas, sugerem outros. Reduzir o peso do Estado na economia ou melhorar a sua performance são ainda duas soluções diferentes apresentadas pelos dois grupos, não necessariamente os mesmos.
Debate, aliás, muitíssimo interessante e instrutivo. Para minha surpresa, contudo, ninguém falou daquilo que me parece ser um problema fundamental. Não sou, obviamente, nenhum entendido em matéria de economia, mas parece-me que a falta de produtividade, não apenas das empresas mas especialmente dos cidadãos, é uma das principais causas da situação crítica em que nos encontramos.
Há meia dúzia de anos as estatísticas demonstravam que a produtividade nacional, somatório das produtividades individuais, era inferior a dois terços da produtividade média da UE, que é, aliás, minimizada pela inclusão da nossa no cálculo. Pior ainda, ela tem vindo a decrescer progressivamente, sendo agora pouco mais de metade das dos restantes europeus, como foi revelado por estatísticas publicadas esta semana.
Ora, parece-me evidente que bastava melhorarmos um pouco esta produtividade (nem necessitaríamos de chegar aos cem por cento) para termos o problema resolvido, obviamente desde que não desatássemos a gastar os ganhos adicionais, aliás um hábito bem português.
Isto é, a solução do problema está muito mais nas mãos dos cidadãos do que nas do Estado. Fazer crescer as receitas e diminuir as despesas não depende do cidadão; aumentar a produtividade depende essencialmente dele. E isto, parece-me, nunca foi devidamente explicado aos portugueses. É preciso dizer-lhes que produzir bem é não só importante mas um dever de cidadania os professores têm que gastar mais tempo a ensinar, os médicos e enfermeiros têm de tratar mais doentes, os juízes, procuradores e advogados têm de resolver mais processos judiciais, os funcionários das finanças têm de atender mais utentes, os polícias têm de exercer maior vigilância, os alunos têm de estudar e aprender mais, etc., etc. Tudo o resto ocorre paralelamente.
E isto poderia fazer-se quase de um dia para o outro, assim o quiséssemos todos, mas tem de ser especialmente promovido nas nossas escolas, com a introdução de disciplinas especialmente dedicadas ao ensino das matérias relacionadas com a cidadania, que hoje não temos mas já tivemos, e pelas quais temos até uma repulsa instintiva.
As nossas crianças e os nossos jovens estão a ser criados num ambiente de facilitismo que lhes faz crer que os problemas, se os houver, acabarão por se resolver por si próprios ou com o dinheiro dos papás. E também por isso estão cada vez mais alheados dos grandes debates da sociedade, políticos ou não.
Aqui, sim, os nossos governantes têm pecado por omissão. O nosso sistema educativo tem que ser profundamente reformado, desde o jardim-de-infância. Os nossos problemas não se resumem tanto à falta de licenciados como ao défice de instrução e cultura dos que não chegam à universidade. Mas a escola não pode fazer tudo. A própria sociedade tem de se reformar, a começar na família, que hoje descarrega nos professores toda a responsabilidade da educação dos meninos.
Enfim, é urgente reformar a mentalidade dos cidadãos. O leitor já se apercebeu de como é cada vez maior o número de portugueses que, quando entrevistados na rua acerca de problemas do dia-a-dia, como a subida dos impostos, o aumento do preço dos combustíveis ou o aumento da idade da reforma, diz "eu não percebo nada de política - não ando a par", assim remetendo toda a responsabilidade para os políticos e governantes que até têm culpa se chove ou não chove?
Cada vez mais, os portugueses vêem estas questões nacionais à luz dos interesses próprios e de como eles os afectam. Olham para o aumento da idade da reforma apenas como uma "chatice" que os obriga a trabalhar mais, sem ter em conta que ela é uma inevitabilidade que resulta de uma expectativa de vida mais longa (nos últimos trinta anos ela aumentou dez), que aumenta o total das despesas com as pensões, e da diminuição do número de trabalhadores mais jovens, que são quem verdadeiramente paga essas pensões.
Ouço muitas vezes dizer "logo que possa reformo-me"; muito raramente alguém diz "logo que o Serviço - ou o País - possa, reformo-me". Enquanto continuarmos a pensar que o início da vida profissional é simplesmente o início da contagem descendente (quanto mais curta e rápida, melhor) para o seu fim, este país não tem qualquer hipótese de melhorar a sua situação.
Hoje, quase toda a gente concorda que a produtividade deve ser recompensada. No entanto, conhe- ço poucas experiências sérias assentes nesta filosofia que se baseia numa avaliação objectiva da prestação individual. Não com base em tabelas extremamente complexas como as que agora se pretende instituir para os trabalhadores da administração pública, que apenas complicam as coisas e ainda vão contribuir mais para o cinzentismo.
E nem mesmo no sector privado tal prática vingou. Todos reconhecemos que a prestação de cada um é diferente e, como tal, deveria ser premiada de modo diferente, mas todos nos recusamos a aceitar que o vizinho do lado possa ser mais produtivo que nós. E normalmente os bons exemplos são encarados com desconfiança e não como modelo a seguir.
E por este motivo, e ao contrário do que tantas vezes afirmam os nossos mais altos cargos políticos, provavelmente apenas porque o estatuto assim o exige, eu não estou nada optimista em relação ao nosso futuro. Penso, até, que ele vai ser apenas a continuação de um passado que, mais vezes sim do que não, sempre demonstrou que nós somos um povo que "nem se governa nem se deixa governar". A não ser que nos superemos!
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