quarta-feira, outubro 26, 2005

Encruzilhadas

Ontem vi nos telejornais o Primeiro-Ministro Sócrates a explicar indignado que a greve dos juízes era injusta e absurda porque baseada apenas na recusa desses "funcionários públicos" em aceitarem um regime de assistência na doença igual ao de toda a função pública, tal como ele próprio possui.
Ressalta a evidente mentira quanto à parte que lhe respeita, talvez provocada pela ignorância, já que os Serviços Sociais da Presidência do Conselho de Ministros não se confundem com nenhum "regime geral", nem consta que estejam na lista dos "regimes especiais" que o governo lançado na sua empresa moralizadora decidiu unificar na ADSE.
Ese pormenor ficou porém de todo secundarizado perante outro aspecto das declarações, que nem sequer é a explicação trapalhona e batoteira quanto aos motivos da greve (assunto que mereceria ser esclarecido, em outra sede).
O mais importante em tais declarações é obviamente a referência expressa aos juízes como "funcionários públicos", coisa que nunca se tinha ouvido dizer por um Primeiro-Ministro em exercício.
A relevância de tal tratamento consiste precisamente em que não se tratou de um mero lapso de linguagem: a designação traduz rigorosamente aquilo que os responsáveis políticos, no executivo como no legislativo, pensam de há muito - e está presente em todas as atitudes deles referentes aos tribunais.
Importa sublinhar que no que lhes é essencial e próprio os conceitos de juiz e de funcionário excluem-se mutuamente (sem desprimor para nenhuma dessas categorias de servidores do Estado). Um juiz não pode ser funcionário, e um funcionário não pode ser juiz. Um funcionário é um agente da administração, central ou local, integrado numa cadeia hierárquica, vinculado a deveres de obediência, a ordens e instruções genéricas ou concretas, subordinado aos responsáveis políticos de que depende. Um juiz é um titular de um órgão de soberania independente dos restantes poderes do Estado. A Constituição e as Leis assentam na separação do Poder Judicial em relação aos Poderes Legislativo e Executivo, e os titulares dos órgãos de soberania Tribunais têm consequentemente um estatuto que lhes garanta o exercício desse poder em plena independência, com as garantias inerentes.
Tratar os juízes como funcionários públicos significa não só deitar fora alguns séculos da tradição jurídico-política do Ocidente, rejeitando a separação de poderes e a independência dos tribunais, como efectivamente subverter todo o edifício jurídico e constitucional vigente.
Se os Tribunais constituem mais uma espécie de repartição do Ministério da Justiça, e os juízes mais uma categoria de funcionários públicos, como na realidade pensam generalizadamente os responsáveis políticos, será necessário a curto prazo rever-se toda a Constituição na parte tacitamente revogada, e modificar depois em conformidade todas as leis comuns relativas ao sector.
Até lá, o simples tratamento dos juízes como "funcionários públicos", pelo próprio Primeiro-Ministro em funções, como por parte de muitos outros responsáveis políticos, representa matéria tão grave que só por si justifica todas as greves e mobilizações que se possam fazer contra o programa político subjacente a tais ideias.

3 Comments:

At 1:13 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Mulheres na Justiça....? Nao concordo.....

 
At 1:29 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Concordo e subscrevo na íntegra o texto aqui editado pelo Manuel. Também eu ouvi essas declarações em que os juízes foram chamados de funcionários públicos. Contudo a mim me parece que os juízes também se puseram a geito ao fazerem uma greve de forma consertada com os funcionários públicos da área da justiça, confunfindo-se com eles. Fica-se com a ideia que os juízes estão a ser tratados por funcionários públicos a pedido dos próprios. Tipo aquele jogador que se agarra ostensivamente ao adversário em frente do árbitro para que este o castigue com um cartão amarelo, porque tal lhe convém.

 
At 7:26 da tarde, Anonymous Anónimo said...

O anterior comentador tem "certa razão". Mas essa razão é secundária perante o aspecto fundamental que o Azinhal levanta. O Juiz obedece à Lei, segundo a Razão, não a ordens segundo a hierarquia de mando.
O ataque à dignidade das pessoas prolonga-se agora na demolição, como bem diz o Azinhal por outras palavras mais exactas, da Civilização. Funcionarização, proletarização, submissão. Professores e médicos já sofreram tal sorte, ao abrigo dos "sistemas nacionais" respectivos. Já não ensinam nem tratam, passaram a administrar a "educação" e a "saúde" entidades abstractizadas que vivem em actas e registos e não por resultados palpáveis. As profissões liberais, as artes, as faculdades - no sentido original deste termo - foram raptadas, isto é, violadas, retiradas do seu berço próprio, científico, e encerradas na gaiola administrativa. Antes, ao professor, dava-se-lhe uma ordem única, então inequívoca: "Sê professor, ensina a tua ciência". Hoje diz-se-lhe: "Dá aulas, aplica a reforma, faz o que te mandam." O professor, que exercia num Liceu Nacional como podia exercer num Colégio particular, passou a "agente educativo" entre outros. Por todo o mundo, porque isto é mundial, os professores estão a perder o interesse pela ciência que ensinam. São todos funcionários: Recebem ordens e fazem que cumprem. É a reforma rotineira...

Um abraço do João Baptista

 

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