terça-feira, novembro 01, 2005

Esquizofrenia

Pelos canais anglo-saxónicos fui tomando conhecimento do que se passava em Paris: na periferia da grande cidade, nos imensos subúrbios onde se acumulam as massas desenraízadas de africanos e magrebinos, vive-se há quase uma semana em ambiente que os relatos disponíveis não hesitam em qualificar de guerrilha urbana ou de guerra civil.
Um dirigente de um sindicato de polícias clamava pela intervenção do exército, dizendo que as forças policiais não tinham meios nem estavam preparadas para controlar a situação.
As reportagens falam como é habitual de apedrejamentos, de veículos incendiados, de montras partidas, mas já também de tiroteio, de batalhas de rua contra as forças da ordem, de bandos organizados que se deslocam habilmente na geografia dos seus territórios, perante a impotência dos habitantes e dos contingentes policiais.
Tudo isto se podia ler na CNN ou na BBC, e prolonga-se desde há quase uma semana, atingindo os tumultos e as desordens nestas últimas quatro noites uma extensão e um grau de violência nunca vistas em episódios anteriores.
Disto mesmo já se fizeram eco alguns blogues portugueses (Santos da Casa, Pena e Espada, que eu tenha visto).
Queria no entanto dizer que mais do que nos factos em si a minha atenção prendeu-se nos meios de comunicação social franceses. Com efeito, eu costumo navegar nos sítios noticiosos dos mais conhecidos órgãos de informação do hexágono, desde o Le Monde ao Le Figaro...
E a cobertura dos acontecimentos que se desenrolam ali, por esses a quem evidentemente não pode escapar o cheiro dos incêndios e o ruído das arruaças, tem algo de verdadeiramente esquizofrénico: não se trata já de desvalorizar estrategicamente uma realidade que desagrada, trata-se efectivamente de esconder ou deformar totalmente essa realidade.
Ao princípio não era possível encontrar sequer notícias sobre esses acontecimentos.
Quando procurei, os jornais ostentavam com grande destaque notícias sobre tumultos em Zanzibar, e depois sobre manifestações e desordens na Costa do Marfim, mas nada diziam sobre os seus próprios bairros a ferro e fogo.
Depois, começaram a surgir pequenas notícias, relegadas para o canto, onde pouco se notavam. E o teor era verdadeiramente espantoso: praticamente em todas salientava-se que a calma regressou a Clichy, a normalidade voltou, a situação está estabilizada - sem que se percebesse muito bem que anormalidade é que afinal se tinha passado.
Não sendo possível continuar todas as manhãs a anunciar que ao contrário da noite anterior a paz reinava desde essa manhã em toda a periferia parisiense, as notícias começaram então a condescender em informar que ao que parece teria havido uns carros incendiados, uns confrontos com a polícia, e uns jovens teriam sido detidos. Mas tudo sem importância de maior.
Em todo o caso, nada que alguma vez permitisse entender a situação - e nada que identificasse os protagonistas como imigrantes, ou negros ou árabes. Estas designações fazem parte das palavras interditas. Jamais se podem utilizar nos noticiários. E entretanto sabe-se aliás que essa interdição não escrita passou mesmo para proibição legal, pelo que todos os jornalistas sabem que se acaso usarem esses designativos terão à perna uma chusma de associações antiracistas que os farão responder em tribunal por delitos como incitação ao ódio racial ou quejandos desvios criminais.
A doutrina vinculativa é que a indicação da raça constitui delito, dado que não é necessária para transmitir os factos, pelo que essa referência só pode significar propósitos tenebrosos de generalizar a um grupo social ou racial comportamentos individuais negativos.
O certo é que esta prática gerou mecanismos perversos, que inquinam fatalmente toda a comunicação. Desde há anos que não é possível publicar numa notícia negativa (um roubo, uma violação, uma razia dos gangs das periferias) qualquer palavra que denuncie a pertença dos autores a este ou aquele grupo étnico. De modo que se tornou obrigatório dizer e escrever que se tratou de "jeunes". E generalizou-se o uso: são sempre jovens, apenas. O pior é que com o tempo este uso e abuso fez com que a palavra ganhasse para o destinatário comum uma significação diferente: onde lê ou ouve que foi um jovem que assaltou ele entende que foi um árabe ou um negro.
Em reacção a este perigo, as redacções, embaladas no zelo antiracista, quando deparam agora com um acto violento praticado por um jovem branco, já se sentem obrigadas a consignar isso mesmo: "un jeune blanc" assaltou uma velha, "un jeune blanc" bateu no pai. Se não for branco, será apenas "un jeune".
É preciso sempre dominar os códigos.

10 Comments:

At 10:04 da tarde, Blogger Rodrigo N.P. said...

"A esquerda não quer saber" e este são dois textos brilhantes. Leitura obrigatória sobre a hipocrisia histórica e os mecanismos de terrorismo intelectual.

 
At 10:12 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Lo mismo hace el diario del grupo Prisa "El Pais" sobre lo que acontece en la España de Zapatero......¡Viva la politica internacional!

 
At 10:26 da tarde, Anonymous Anónimo said...

E nos nossos media é a mesmíssima coisa.

 
At 8:18 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Film frances de los años 70: Dias tranquilos en Clichy....

 
At 9:54 da manhã, Blogger Flávio Santos said...

O Figaro está longe dos seus tempos mais direitistas (pese a eterna devoção gaullista) mas ainda assim lá vai tendo alguns bons artigos de opinião, recensão de obras de autores "incorrectos" (Céline, Nimier, etc.); e mesmo nos "fait divers" arranja maneira de fugir à censura: não designando a etnia do criminoso, publica o nome do mesmo; e não é preciso dizer que era um "jeune" para se perceber que o autor foi um Mohamed qualquer coisa...

 
At 10:34 da manhã, Blogger Bruno Santos said...

Ao anónimo:
Esse filme, inspirado na novela "Quiet Days in Clichy", de Henry Miller, retrata a vida libertina do escritor americano em solo francês. Miller viveu, de facto, em Clichy; mas a Clichy de Miller, a do livro e do filme, não é a Clichy-sous-Bois da guerrilha étnica, que fica 20 km a este de Paris; mas a Clichy-la-Garenne que fica a norte da capital, mesmo junto à «périphérique», entre Saint-Ouen e Levallois-Perret. Daí uma das entradas em Paris pelo norte ser justamente a Porte de Clichy.

 
At 11:05 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Agradezco a Bos su precisión. Saludos desde España.

 
At 11:41 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Douce France.....

 
At 5:30 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Grande texto! É para ler, reler, dar a ler, imprimir e distribuir!

 
At 8:45 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Gabachos.....

 

Enviar um comentário

<< Home