quinta-feira, novembro 10, 2005

Sobre Salazar, inéditos e dispersos

Estive a ler o artigo de José Manuel Quintas dedicado ao primeiro volume de "Inéditos e Dispersos" de Salazar, que a Bertrand Editora editou em 1997, sob a responsabilidade de Manuel Braga da Cruz.
José Manuel Quintas publicou essa recensão na revista "História", no Verão de 1998, mas só agora tomei conhecimento da mesma, por ter sido inserida, e muito bem, no "Unica Semper Avis".
O artigo, com o título "Origens do Pensamento de Salazar", lê-se com muito interesse.
E não pode deixar de ler-se com um sorriso ao deparar-se em epígrafe com uma frase do autor: "Salazar nasceu para a política pugnando pelo acertar do passo com a Europa, e com a paixão da Educação".
Se a intenção era meter-se com Guterres, teve piada.
Já se era retratar o "jovem Salazar", a expressão pouco diz. Que pugnava "pelo acertar do passo com a Europa" ou manifestava "a paixão da Educação" é algo que se pode dizer de quase toda a gente que marcou de algum modo a época em causa, e não só essa. Republicanos e monárquicos, positivistas e antipositivistas, integralistas ou seareiros... todos em algum momento incorreram nesses feios pecados (ou lugares comuns, conforme se prefira). O que dava ou não conteúdo a um pensamento próprio é o que cada um pretendia dizer com isso.
O artigo em questão, aliás, e sem prejuízo do apreço e consideração que nos merece o trabalho do seu autor, enferma aqui e ali da irrupção de algumas ideias fixas (ideias feitas...) que estão nele sempre presentes, por vezes a afectar o normal fluir do pensamento e a limpidez do olhar. É o caso da preocupação permanente em demonstrar o distanciamento, ou mesmo a oposição, entre Salazar e os mestres do Integralismo; essa preocupação leva por vezes à precipitação, ao retirar das premissas conclusões que estas não suportam. Por exemplo, a dada altura, o autor, com visível satisfação, agarra em frases do jovem Salazar para extrair delas o alinhamento deste com o regime republicano ("Se hoje somos, como católicos, atravessados por traiçoeira navalha, ontem recebíamos um abraço tão apertado, que positivamente nos amolgava as costelas" -, não escondendo no mesmo passo, aliás, a sua "sentida indignação" por "todos os ataques que (...) a monarquia transacta fizera à Igreja Católica").
E conclui triunfante o autor que "fica assim desfeita a lenda do monarquismo de Salazar - lenda que o próprio alimentará durante décadas (...)".
Eu confesso que não sei se Salazar era monárquico ou republicano, e nem sei se ele tinha posição tomada nessa matéria. O que me parece francamente exagerado é afirmar que ele alimentou durante décadas a lenda do seu monarquismo. Ao que julgo saber ele nunca se apresentou como monárquico ou republicano, e pelo contrário até em ocasião crucial em que essa questão se discutia respondeu precisamente que os seus interlocutores não sabiam o que ele era e que ele embora o soubesse não o queria dizer - o que podemos com toda a legitimidade dar por assente é precisamente que ele não quis tomar posição a esse respeito.
Quanto às frases citadas, não vejo como podem elas ter a apontada consequência de desfazer a lenda do monarquismo de Salazar. Se ele mostra "sentida indignação" pelos ataques que "a monarquia transacta" infligira à Igreja Católica, assumindo as dores desta, e manifesta nenhum empenho em voltar a essa monarquia, em que é que isto o diferencia dos escritores do Integralismo, ou da Acção Realista, ou de algum dos grupos que doutrinaram a restauração no período que vai de 1914 aos anos vinte? Algum destes teve uma palavra de apreço pela "monarquia transacta"? Algum disse ou escreveu uma linha que fosse a defender que se voltasse ao regime deposto? E não abundaram todos eles em enfáticas afirmações sobre a inutilidade do regresso ao regime derrubado em 1910, esclarecendo que a sua monarquia não era essa? Eu, usando apenas as parcas faculdades que são as minhas, penso que só com isto o Dr. Quintas não logra distanciar o jovem Salazar dos mestres do Integralismo, nem sequer demonstrar o seu ralliement ao regime republicano. De igual forma, o apontado maurrasianismo que caracterizaria o jovem Salazar, diferentemente do que aconteceria com os integralistas, poderia ser essencial para compreender a fundamentação filosófica do eventual monarquismo, mas não conduziria ao seu eventual republicanismo. No edifício do pensamento político de Maurras, a monarquia não é um pormenor secundário ou irrelevante.
Que me desculpe a impertinência, mas não fiquei convencido.
Declaro, a terminar, e com todo o gosto, que estes são reparos de todo insignificantes; e que tive muito prazer em ler o artigo do Dr. José Manuel Quintas sobre a recolha de textos levada a cabo por Manuel Braga da Cruz.