quinta-feira, dezembro 15, 2005

De novo as direitas

Esperando não estar a cometer grande abuso, e visto que o autor não publicou no seu blogue o texto em causa, resolvi reproduzir aqui o artigo de Miguel Castelo-Branco na passada edição do semanário "O Diabo".
Está bem escrito e bem construído, é agradável de ler, e merece ser lido com olhos de compreender. Sem dramatismos - um dos exercícios habituais da direita portuguesa é a auto-flagelação, praticada correntemente em momentos de depressão, por vezes entremeados com fases de autoglorificação - mas com atenção e inteligência.
Ei-lo, porque Vocelências não haveis comprado "O Diabo" e tendes todo o direito de estudar para opinar em matérias tão transcendentes.

Direita moderna e messianismos, anacronismos e outros reaccionarismos

É sabido encontrarmo-nos prestes a sair de uma terra de ninguém epocal. Para trás ficaram os grandes antagonismos ideológicos que estiveram na origem de uma guerra mundial - que matou os fascismos - e de uma Guerra Fria, que erradicou o comunismo. Parece termos voltado, definitivamente, a página à herança do século XIX e deitado para o baú das antiqualhas as paixões mortais que assolaram o século XX.
A querela entre esquerdas e direitas já não se coloca, como antes, entre capitalismo e socialismo(s) - em que se inseriam, afinal, os fascismos - entre adeptos da Liberdade e defensores das «liberdades», monárquicos e republicanos, materialistas e espiritualistas, estatistas e civilistas, individualistas e colectivistas, nacionalistas e internacionalistas ou entre elitistas e democratistas.
Se bem que ainda se justifique plenamente a dicotomia entre Esquerda(s) e Direita(s), esta demarcação recobre hoje mais aspectos de sensibilidade e outros que dizem respeito a problemáticas próprias da antropologia filosófica e antropologia política - a ideia de homem e de comunidade, de justiça e bem comum - que a um «credo» pronto a-usar que foi característica dominante do fanático século dos totalitarismos. Há hoje a percepção clara que a divisão entre as famílias políticas se localiza mais entre aqueles que aceitam a civilização presente - i.e, a dos direitos do homem, da livre associação e participação dos cidadãos, da livre opinião - e aqueles que a negam. Já não se trata tanto de uma luta entre democracia e anti-democracia (nos seus estádios diferenciados, mas relacionados: autoritários e cesaristas, totalitários e concentracionários), mas de uma luta pela interpretação da democracia. Sabemos que o termo foi perdendo substância, por tão usado e reivindicado por aqueles que, no fundo, a ele se queriam associar. Nos anos 50, a URSS reivindicava-se de uma «democracia popular» - cobrindo com o ridículo as democracias liberais com o apodo de «democracias burguesas»- ; os regimes autoritários conservadores auto-crismavam-se de «democracias orgânicas» e pelo terceiro mundo campeavam as «democracias socialistas», «democracias paternalistas» e outros arranjos semânticos exóticos. É evidente que foi a forma «burguesa» (liberal) que triunfou. Hoje, só franjas insignificantes e sem capacidade interventiva ousam atacar a democracia. É precisamente em torno do tipo de democracia (burguesa) que se travam os maiores embates. Aparentemente, dir-se-ia uma querela bizantina, mas não é. Se todos aceitam a democracia (burguesa) - protagonizada por partidos políticos, aceitando a rotatividade produzida pelo voto livre dos cidadãos - por que razão se mantêm, vivas e bem activas, forças da extrema-esquerda à extrema-direita? É tão evidente o Bloco de Esquerda aceitar a democracia burguesa como o Sr. Le Pen. Submetem-se ambos a sufrágio, participam na vida do regime democrático e lutam por clientela no mercado de opinião, aqui como em França. A universalização da democracia (burguesa) é um dado de civilização, pelo que quem dele se afasta perde direito à cidadania plena.
A direita portuguesa é tradicionalmente autoritária, conservadora, confessional, paternalista e holística, pelo que não ousa identificar-se com a acidentalidade de um regime que vive do quotidiano. O facto de haver uma «direita sociológica» sem partidos assumidamente de direita é demonstrativa desta aversão. Imputa-se ao PREC o banimento da direita, à Constituição a danação de qualquer partido que contrarie o espírito da III República, mas a verdade é que essa direita se especializou mais na tertúlia opinativa - e no espírito do contra - pelo que se auto-excluiu da vida pública. Fora do tempo, contra o tempo, é uma torre de marfim que olha desdenhosamente para a realidade vibrátil e mantém-se presa de purismos sem ponto de aplicação. Essa direita - alguma até recusa identificar-se como tal - apresenta-se de três formas:
- A direita messiânica, que olha para o futuro como os maoístas dos idos de 60, acredita numa «revolução castigadora» que reponha a «ordem natural» e traga um «homem novo» incorruptível, meio monge, meio soldado. É, no fundo, uma herança delida e ajustada ao tempo presente do fascínio que as gerações dos anos 30 e 40 experimentaram pelo fascismo e pelo nacional-socialismo. Nunca teve qualquer expressão política e teve sempre, a alimentá-la, penas literárias de mérito. O grande e trágico erro desses eternos cultores da juventude é o da espera (messiânica) e o facto de desconhecerem que os factores que desencadearam a Grande Crise já não se podem reproduzir. O capitalismo e a cultura democrática (burguesa) são hoje tão fortes que tais posições serão sempre, pese a boa fé e ardor dos seus defensores, relegadas para posições excêntricas.
- A direita anacrónica, que julga possível reeditar um novo salazarismo sem Salazar, numa época de esvaziamento dos atributos tradicionais da soberania do Estado, de globalização e intensa circulação de ideais, mercadorias e pessoas. Sendo uma «direita» residual, está confinada a um dimensão memorialística ou a assomos de prédica anti-regime que muito pouco diferem da «conversa de taxista».
- A direita reaccionária, que discute com ardor as excelências da Constituição Tradicional, as liberdades municipais e sociais, sonha com a nunca existente aliança entre o Trono e o Altar, com uma sociedade rural e fechada, bem como uma monarquia «miguelista». O Integralismo Lusitano era, já nos anos 10 do século XX, uma excentricidade fora do tempo, mas mantém-se hoje, com cosméticas mais ou menos convincentes, no arsenal de convicções de muitos.
Ora, uma direita moderna aceita o tempo presente como ele é, é democrática e elitista (i.e, meritocrática), não estatista (i.e, confia na iniciativa individual, conquanto moderada pelo interesse social), aceita o capitalismo, é neutra no que concerne à confessionalidade dos cidadãos (mas não laica) e respeitadora das liberdades públicas, individuais e privadas. É, no fundo a direita que temos na Alemanha, na Itália e em França. Se a direita quer intervir, se quer ter voz e capacidade de intervir (legislar e governar), tem de aceitar o repto. A direita moderna pode ser nacionalista - pois o liberalismo oitocentista também o foi - pode ser intervencionista e pode até defender posições de maior severidade em matérias que se relacionem com a manutenção da ordem e da ecologia social. A direita moderna deve ser Ocidental e possuir a agudeza suficiente para compreender que qualquer pensamento estratégico na prossecução dos objectivos permanentes do Estado – independência e liberdade nacional, capacidade de agir na política mundial – deve aceitar o facto de vivermos a “Era Americana”. Sem isto, nada a fazer.

3 Comments:

At 7:02 da tarde, Blogger dragão said...

Caramba, o mestre Pangloss não diria melhor.

Salva-se ao menos a Direita-Colibri. Valha-nos isso!...

 
At 2:25 da tarde, Anonymous Anónimo said...

parabéns pela iniciativa conjunta com o Restaurador.

 
At 7:42 da tarde, Anonymous Anónimo said...

obrigado pela transcrição, caro Manuel
belo artigo

 

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