quarta-feira, janeiro 25, 2006

Palavras de outros

Com algum atraso, estive a noite passada a ler o que foi dito no passado Congresso dos Advogados. Entre muita palha e muita banalidade, encontrei uma intervenção digna de ser escolhida e destacada neste podium: as palavras são de José Alberto Morais Sardinha, e raramente se podem ler tantas e tão relevantes verdades em tão curto espaço.
Pode ler-se no Boletim da
Ordem dos Advogados.
Fica à atenção dos leitores, e em especial dos responsáveis do
Verbo Jurídico.
Quanto ao autor, sempre lhe digo que partilho as suas preocupações e estou pessimista: efectivamente quem domina a política, o Ministério, a Ordem, e as reformas, são os tais que vivem muito concretamente do tráfico de influências; essa estranha espécie híbrida de político/advogado/homem de negócios, que se orgulha de nunca ter posto os pés num tribunal e para quem o bom funcionamento quer da máquina administrativa do Estado quer do aparelho de aplicação da Justiça seria, mais do que um sério revés, uma condenação quase certa. Por isso as reformas que virão, e como se vê de muitas fantasias e perversidades anunciadas, não irão no sentido da simplificação e da eficácia; basta saber ler, e ir ouvindo o que se diz, para se ficar certo que ainda serão acrescentados mais uns entraves e uns pauzinhos na engrenagem. Não se pode deixar que a máquina trabalhe, que da impotência desta vivem eles todos.
Eis a comunicação de José Alberto Sardinha:

Sou advogado há cerca de trinta anos e nunca a Justiça Portuguesa me surgiu tão degradada, tão desprestigiada. Nunca os processos demoraram tanto a atingir o seu termo, nunca o público manifestou tanta descrença no recurso à Justiça.
Não sou delegado ao Congresso, nem esta comunicação é uma tese para desenvolver os remédios e tratamentos para a triste situação em que se encontram os tribunais portugueses.
Quero só fazer algumas breves reflexões, com toda a frontalidade que deve caracterizar a nossa nobre profissão, despidas das flores de retórica e conveniência que costumam dominar este tipo de reuniões. Não venho a isso. Quero apenas alinhar uma fracas ideias, ou melhor, exprimir a minha indignação e alinhar alguns tópicos dispersos que ajudem à reflexão dos congressistas.
0 que resultou do célebre congresso da Justiça, senão palavras bonitas, ramalhetes de lugares comuns e consensos improdutivos? E o que vai resultar deste VI Congresso, para além da aprovação de moções bem intencionadas? Afinal, qual é o papel dos advogados e qual o seu dever na resolução dos problemas da Justiça?
A maior parte dos advogados que vêm ocupando a pasta ministerial da Justiça, são no apenas in nomine. Saíram dos bancos da escola para a política e nunca foram a um tribunal. Têm escritórios que se sustentam pinguemente, diga se à custa dos negócios que a política proporciona. Vivem, na verdade, do tráfico de influências. Não sabem nada do funcionamento dos tribunais, nem querem saber. Não precisam de lá ir, porque a sua "advocacia" é outra. Por isso é que quando falam sobre a organização dos tribunais, quando legislam sobre a matéria, só sai asneira.
Não tenhamos medo das palavras. Chegou a hora de dizer alto o que todos nós dizemos à boca pequena.
É preciso denunciar esta situação, pois é ela a responsável pela degradação da Justiça, peta ausência de reformas verdadeiras e eficazes. Não há vontade política para resolver os problemas, porque não há interesse em resolver os problemas.
Quanto mais entraves existirem ao bom funcionamento da administração pública, mais corrupção haverá e mais enriquecerão os políticos especialistas em "vender facilidades".
Por isso tudo continua na mesma, ou cada vez pior.
É simplesmente anedótica a reforma que a acção executiva sofreu e que tornou completamente impossível cobrar uma dívida em Portugal. Os caloteiros rejubilam e continuam impunemente a encher os bolsos à custa dos outros e ao abrigo do chapéu protector que é a inoperância do Estado.
Quem concebeu uma tal reforma já foi identificado? E responsabilizado pelos prejuízos causados aos particulares e às empresas, em suma, à economia nacional? E os políticos que a apadrinharam e assinaram?
Alguém poderá explicar por que razão é obrigatório preencher formulários electrónicos e apresentar os requerimentos executivos pela Internet, quando continua a ser necessário entregar fisicamente a papelada na Secretaria Judicial? E quantas horas mais demoram agora os colegas a redigir um requerimento executivo, se é que conseguem decifrar a verdadeira charada electrónica que nos obrigam a preencher? Andam a brincar aos computadores, ou andam a brincar connosco?
Muitos outros casos poderão ser citados. As situações anedóticas que se vivem diariamente nos tribunais portugueses multiplicam se e poderiam ser reunidas num verdadeiro Anedotário da Justiça Portuguesa com a contribuição de todos e cada um de nós, advogados.
Se, como todos nós sabemos, a grande maioria dos magistrados são trabalhadores, o mesmo acontecendo com os funcionários judiciais, se, como também sabemos, temos mais magistrados e funcionários per capita do que os países europeus, se, mesmo assim, os tribunais continuam atulhados de papel e completamente inoperacionais pelo excesso de processos, a conclusão não parece difícil de tirar: a maior parte do trabalho que realizam é inútil. É inútil (e infantil, para quem conhece a litigância das partes) essa reforma apresentada como um grande avanço civilizacional que se chama audiência preparatória; são inúteis as tentativas de conciliação anteriores à audiência final, é inútil a maior parte das diligências judiciais. Estamos todos nós, advogados, a fazer requerimentos inúteis, os funcionários a praticar actos inúteis, os juízes a dar despachos inúteis.
Em face do estado calamitoso a que chegou a Justiça em Portugal, o que impede uma profunda reforma do processo civil e do processo penal, em ordem à sua simplificação?
E os nossos Bastonários, o que esperam para denunciar tudo isto e exigir essa reforma mas concebida por quem conheça os tribunais, por quem tenha bom senso e espírito prático e não por teóricos lunáticos? Ou será que a Ordem está silenciada pelos dinheiros do Ministério da Justiça para colaborar nessa farsa que se chama apoio judiciário, compensada com outra farsa que se chama formação de estagiários, que tem como objectivo esconder o escandaloso negócio das universidades privadas que deitam anualmente milhares de licenciados para o mercado de trabalho, a maior parte deles incapazes de redigir um articulado sem erros de ortografia ou de sintaxe? Estará a nossa Ordem também ela, a transformar se num monstro burocrático? A ensinar os jovens advogados a serem formalistas e burocratas, como o C.E.J. ensina os jovens juízes a serem? E o C.E.J. não precisa, também ele, de uma profunda reforma?
E a nossa Ordem?

1 Comments:

At 1:53 da tarde, Blogger JSM said...

Elucidativo.
Acrescente-se que existem muitos escritórios de advogados apenas para a cobrança de pequenas dívidas, sustentadas em cheques sem cobertura, a favor das grandes empresas do Estado! A lei substantiva, ao conceder excessiva protecção ao comércio de alto risco, (vendas a prestações, por exemplo), também é uma das grandes responsáveis pelo avolumar dos processos. Claro que esta situação interessa imenso aos advogados. E aos magistrados. E aos funcionários.
Faz bem em divulgar este escandalo permanente.

 

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