quarta-feira, fevereiro 08, 2006

A herança da revolução francesa

Na minha opinião, há um facto assente: não existe neutralidade. Permanecer silencioso significa tão-somente conferir um poder extra àqueles que falam (e, no campo das relações internacionais, permanecer «neutro» perante um problema ou um dado processo, é apenas guardar a própria «força» para outra ocasião). O simples facto de pertencer a uma escola de pensamento, de seguir uma doutrina filosófica ou religiosa, de votar num partido polí­tico, implica um «ajuizar» que atinge, sucessivamente, todos os campos de aprendizagem e actividade.
Foi dito - (e não deixa de ser provável que seja algo mais que um gracejo) - que o homem de direita tinha uma gastronomia diferente da do homem de esquerda! Nenhum campo escapa à «ideologia», a qual definirei aqui como o modo de ver o mundo que nós herdamos, que nós sentimos instintivamente, ou que deliberadamente escolhemos como nosso. O mundo é neutro fora dos homens, pois fora do homem não existe pensamento auto-consciente. Nas sociedades humanas, pelo contrário, nada é neutro. Os seres humanos, poderíamos dizer, são animais que dão significado ao que os rodeia, colocando esse meio numa perspectiva histórica específica. Há maneiras diferentes de ver o mundo e de pertencer a ele, e estas incluem o conhe­cimento puro, tanto como o conhecimento intuitivo, as emoções, os valores implícitos, os juízos estéticos, etc.
Além disso temos que considerar que a sociedade é uma estrutura, na qual, tudo está ligado. A nossa percepção intelectual leva-nos, por meio da capacidade de análise. a separar os diferentes constituintes desta estrutura para tentar compreender melhor a sua ordem e para alcançar a sua transformação.
Mas, entretanto, este conhecimento dá-nos a ilusão de que as coisas são realmente distintas umas das outras, embora elas apenas estejam assim na nossa mente (nota­mos, a propósito, que é esta profunda diferença existente entre o mundo das ideias e o mundo dos factos - sendo a primeira apenas uma imagem sempre imperfeita da segunda - o que explica o carácter heteróclito da acção política, isto é, o facto de que as consequências reais das acções empreendidas diferem sempre, de um ou de outro modo, do efeito pretendido inicialmente). Real­mente (como o disse um pouco acima) tudo está ligado. Numa estrutura social, o sentido de cada membro depende não só da sua natureza intrínseca mas também - e espe­cialmente - da sua função relativamente aos outros mem­bros. Nações, povos, indivíduos têm um sentido enquanto estão em posição, em comparação com ambos os partidos e - tal como para um jogo de xadrez - ninguém pode actuar sobre nenhum deles, isto é, modificar as barreiras que existem entre este e aquele membro, sem modificar, ao mesmo tempo, uma ordem mais geral.
Claro que podemos lamentar este estado de coisas, assim como podemos lamentar a influência crescente das ideologias. No entanto, parece-me difícil, se não impossível, modificá-lo. Queiramo-lo ou não, estamos condicionados pelo nosso meio assim como também o estamos pelo que existiu antes de nós.
O homem nasce primeiro como um herdeiro. Ele não nasce em série, ele nasce dentro de um povo, dentro de uma cultura, dentro de uma dada era, e é desta particular posição em que está que ele será levado a emitir juízos de valor e juízos de facto; (é tão necessário aspirar à objecti­vidade, como quanto teremos que nos resignar que sempre será impossível alcançar uma objectividade total. É impos­sível considerar «objectivamente» todos os aspectos de um problema, assim como o é olhar a terra de dois pólos ao mesmo tempo).
Nesta relação, as leis que governam as sociedades humanas não diferem muito das leis da microfísica: a posi­ção do observador determina em parte o esboço da «pai­sagem» estudada.
O que é certo, por outro lado, é que as ideologias, isto é, os modos de ver e conceber o mundo, ainda quando não se associam como tal não foram sempre conscientes de si próprias como o são hoje, numa era em que já foram grandemente acumuladas e formalizadas numa multidão de sistemas. Esta «súbita preocupação ideológica« é, obviamente, uma consequência directa ou indirecta da revo­lução de 1789. De facto, logo que o princípio de autori­dade que naturalmente governava as sociedades da pré­-revolução foi posto em dúvida na sua legitimidade e nos seus fundamentos, tudo o que antes «was going without saying~» tudo o que era espontaneamente considerado como posição integrante de uma «ordem natural», apareceu como convenção, isto é, como uma criação humana subjec­tiva, e, em consequência, deparou-se com uma grande quantidade de facções politico-ideológicas, pretendendo todas, sucessivamente, possuir uma «nova verdade» e pro­curando os meios de assegurar o poder para si próprias. Paralelamente, desde que o Estado se colocou na posição de ser questionado pelas diversas facções, as quais estão aptas a uma tomada do poder de um dia para o outro (como é hoje sabido) vimos, enquanto todo um edifício de contra­-poderes era levantado frente ao poder estabelecido, simul­taneamente surgir toda uma multiplicação e expansão de pólos de pressão ideológica.