segunda-feira, março 27, 2006

Colonizações

Não sei que historiador ou filósofo da História li eu que alvitrava como possível explicação para as diferenças patentes em alguns dos casos mais paradigmáticos da colonização por povos europeus de territórios extra-europeus o predomínio nos seus protagonistas do espírito do Velho Testamento ou do Novo Testamento.
Como os leitores compreenderão, ao menos os que conhecem a Bíblia, a questão apresenta-se de modo muito simples de esquematizar. Em primeiro lugar, o próprio Deus é um deus exclusivo; quando este atribui aos seus filhos a terra que lhes destinou é realmente só a eles, Povo Eleito, que lhes está a dar o presente. Por conseguinte, se existem lá outros habitantes ou não trata-se de um pormenor irrelevante. O que Deus concedeu foi a terra, e aos Seus compete tomar conta dela e nela cumprir os desígnios da Providência.
Os que lerem o Livro de Josué não podem deixar de se arrepiar com a crueza das consequências: o que o Povo de Deus tinha que fazer era, portanto, instalar-se na Terra Prometida e exterminar os seus ocupantes. O programa era arrasar as suas cidades sem deixar pedra sobre pedra, passar a fio de espada os autóctones, incluindo as suas mulheres e os seus filhos e não deixar ser vivo - nem os animais domésticos.
Este era o espírito do Velho Testamento. E não parece de todo descabido lembrar que a Reforma trouxe uma valorização tal das Escrituras, muitas vezes entendidas na sua literalidade, que determinou o aparecimento de múltiplas seitas e fanatismos que ainda encontramos a bater-nos à porta com frequência.
Ora certos fenómenos de expansão sobretudo anglo-saxónica para fora da Europa estiveram em grande medida animados pelos movimentos espirituais emanados da Reforma protestante (é por demais conhecida a relação entre os pioneiros americanos e essas correntes religiosas).
Daí a lógica de certos processos históricos; na Tasmânia não sobrou um só indígena, nos Estados Unidos e na Austrália os que restaram sobreviveram acantonados em reservas para animar o turismo. O que os povoadores europeus dessas vastas regiões queriam era só e apenas a terra, que entendiam como destinada para eles por uma Providência superior, e nesses planos não entravam para nada outros eventuais habitantes. A doutrina praticada durante séculos, na caçada desportiva aos aborígenes ou na doutrina do índio bom equivaler a índio morto, foi a aplicação dessas premissas.
Evidentemente que os pressupostos do Velho Testamento não se estendem ao Novo Testamento. Jesus Cristo veio para anunciar a Boa Nova a todos os homens, a todos os povos. Todos são filhos de Deus. E a missão da Igreja é evangelizar a todos.
Em consequência, as experiências colonizadoras de portugueses e espanhóis tiveram desde o princípio cacterísticas diferentes: procuravam-se outros povos para deles fazer Cristandade, era finalidade matricial da expansão esse alargamento da Fé e do Império.
Daí a presença marcante da Igreja, dos missionários, em todas as empresas dos descobrimentos e da colonização.
Claro que por esta altura já estarão alguns leitores a observar-me que também não faltam exemplos de atrocidades nas colonizações portuguesas ou espanholas, bem pouco compatíveis com esse alegado espírito do Novo Testamento. E que essas não foram as únicas motivações. Obviamente que não irei desmentir tal: chamo a atenção todavia para o facto inegável de que nesses processos históricos grande parte do esforço de boa parte dos participantes foram dirigidos nesse sentido - o que só por si é significativo que baste. Com efeito, a simples ideia da conversão de outros povos é incompreensível à luz do espírito do Velho Testamento.
O que singulariza, pois, a acção colonizadora nos casos em apreço não são os episódios em que parece haver identidade de atitudes com as outras experiências, mas sim aquelas marcas que as distinguem. Os massacres de aztecas ou de incas não são a expressão própria do espírito a que nos referimos; o que permite caracterizar este, por só nele estar presente, é a outra atitude. Massacres houve muitos em todo o lado. Mas António Vieira, Bartolomeu de Las Casas, Francisco Xavier, José de Anchieta e tantos outros, eclesiásticos ou civis - não houve nenhum para falar aos índios da Norte-América, ou aos aborígenes da Austrália ou da Tasmânia, ou para falar por eles.
Quero eu dizer que as sociedades construídas no Brasil, em Goa, no Peru, ou no México, eram por força daquele pensamento que estava subjacente à colonização, e necessariamente, sociedades mestiças.
E já agora queria também acrescentar que na presença de Portugal em Angola, em Moçambique, em Timor ou na Guiné não se consegue certamente vislumbrar em momento histórico algum o impulso de extermínio dos naturais - coisa que nem o mais acérrimo dos críticos dessa presença alguma vez alegou.
A tese do papel decisivo do espírito do Velho ou do Novo Testamento nas várias colonizações europeias, com todas as imperfeições que essas abstracções explicativas sempre transportam, apresenta-se bem vistas as coisas com mais poder explicativo do que alguns gostariam - e não me parece merecedora de rejeição liminar.

5 Comments:

At 6:21 da tarde, Blogger O Corcunda said...

Muito a propósito! Já começamos a conhecer o totalitarismo colonial dos povos pós-cristãos... Nos últimos dias no Afeganistão!

 
At 11:08 da tarde, Blogger Nacionalista said...

É uma interpretação curiosa mas que me parece muito certeira.

 
At 2:31 da manhã, Blogger Mendo Ramires said...

Boa tese.

 
At 5:27 da manhã, Blogger acja said...

Muito boa teoria.
Sinceramente, muito boa.
Também pode ajudar a explicar a arrogância e parcialidade dos saxões.

 
At 1:08 da tarde, Blogger vs said...

Estou de acordo com a sua tese, mas permito-me deixar duas interrogações no 'ar' (já sei que tem como política n responder a comentários):

Mas o Antigo Testamento não faz parte da Bíblia?

Não foi o Antigo Testamento, também ele, inspirado por Deus?

 

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