Crimes de gabinete
Rebentou hoje por aí, aliás com fraco estrondo, próprio de fogo de artifício pobrezinho, a notícia da apresentação de mais uma reforma legislativa na área penal.
Ao primeiro olhar reparei na designação inovadora da entidade que subscreve a proposta, que vem a ser uma "unidade de missão" em vez das velhas "comissões". Mudança explicável, como perceberão os versados nestes assuntos da administração pública, pelo superior estatuto remuneratório das ditas "unidades de missão", inventadas exactamente para satisfazer essas legítimas preocupações de muitos habituais "comissionistas".
Depois, reparei, como já tinha vindo a fazer há algum tempo, no protagonismo de Rui Carlos Pereira. Parece que se consolida como uma espécie de legislador oficial para esta área normativa.
Lembrando-me que idêntico papel foi desempenhado durante muito tempo por Eduardo Correia e a seguir por Figueiredo Dias, vieram-me à lembrança tantas críticas que a seu tempo foram a estes dirigidas; e dei por mim a pensar que não é possível deixar de reconhecer que, ainda assim, cada um dos substituídos paira num plano bem superior ao sucessor; também aqui, e sem desdouro para o brioso marido da Dra. Fernanda Palma, o caminho percorrido é sempre a descer.
Só após estas reflexões, e mesmo assim sem muito interesse, dei alguma atenção às mudanças que se anunciam (que são evidentemente as escolhidas para anunciar, não tendo outra importância que não seja essa escolha).
O que ressalta à primeira vista, e mais uma vez, é a natureza avulsa, carente de qualquer visão de conjunto, que afecta as alterações introduzidas a retalho ao sabor dos imediatismos, sem qualquer preocupação com a harmonia e a coerência do sistema. Enfim, nada de novo desde que a actividade legislativa em Portugal passou a ser determinada pela agenda política.
Quanto ao conjunto de alterações em si, resulta clara a preocupação fundamental de diminuir a população prisional pela diminuição da aplicação de penas de prisão.
Quando se anunciar a reforma do Código de Processo Penal será paralelamente prosseguido o mesmo objectivo pela regulamentação cada vez mais apertada das condições de aplicação da prisão preventiva.
Temos assim à evidência, como já se sabia, que a grande preocupação do poder político é diminuir o número de presos, por razões que em tudo são estranhas às preocupações populares para quem o mais importante na política criminal deveria ser a diminuição do número de crimes.
Vendo as modificações uma a uma, não fico com muita fé em que os objectivos sejam alcançados. Pensemos por exemplo na suspensão das penas de prisão: até agora o julgador só podia suspender a execução das penas de prisão até 3 anos, agora são susceptíveis de suspensão as penas até 5 anos. Terá isto repercussão significativa no número de penas de prisão efectiva? Não parece provável. Com efeito, se os factos criminosos justificam a aplicação de uma pena de prisão de 3 anos já será necessário reunir um conjunto vasto de circunstâncias a favor do arguido para justificar a suspensão da execução dessa pena. Imagine-se agora o que é uma sentença em que na primeira parte do dispositivo se salienta a enorme gravidade de um ilícito e as necessidades de punição que exigem a aplicação da mais gravosa das penas da panóplia legal, a de prisão, e logo por um período de 5 anos; e logo a seguir se começa a explicar que afinal não se impõe o cumprimento de tal pena, a simples censura do facto e a ameaça dela bastam para realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição... Parece absurdo, não parece?
A insistência na aplicação de penas alternativas à prisão, como sejam a multa ou o trabalho a favor da comunidade, nasce obviamente da mesma preocupação. Para quem tem experiência destes assuntos, a objecção surge imediata: a multa é uma pena que nunca terá no meio social o mesmo significado que a prisão; a equivalência representa uma ficção, que se traduzirá depois numa prática em que para idêntico delito aquele que pode pagar paga e o que não pode vai para a cadeia; e a pena de trabalho a favor da comunidade tropeçará na sua inaplicabilidade prática, por força de todas as condicionantes e contingências que a limitam.
Tudo somado, fica tudo na mesma.
Anotei ainda os impulsos contraditórios de criminalizar ou agravar a criminalização de certas condutas, ao sabor dos ventos, ao mesmo tempo que se desvalorizam outros tipos de crime (furto, dano, abuso de confiança, cuja punição efectiva fica praticamente entregue ao agente segundo a mesma lógica já atrás criticada: se puderes pagar pagas, e o assunto fica resolvido, se não puderes sujeitas-te). Com esse regime parece ter desaparecido qualquer preocupação com o desvalor da acção; tudo estará no desvalor do resultado, já que desde que exista reparação patrimonial o arguido evita a punição. Os tempos vão maus para os crimes contra a propriedade (um bem jurídico em acentuada desvalorização).
Em sentido contrário, e para não parecer desfasada com as modas, a "unidade de missão" fez suas as dores com os crimes de conotação sexual e os agora falados "crimes de ódio". Introduziu até novas circunstâncias qualificativas para o homicídio, de modo a satisfazer essas clientelas. A mim surgem-me grandes dúvidas na bondade do arranjo. A verdade é que qualquer homicídio já será qualificado, nos termos gerais, se a morte for produzida "em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade". Porquê autonomizar umas circunstâncias e não outras? É sempre uma escolha delicada. Se a autonomização era desnecessária, deve concluir-se que é perniciosa - na lei o que está a mais só atrapalha.
E agora vejo que estes comentários sofrem do mesmo mal que aponto às reformas: são avulsos e falta-lhes uma visão geral do conjunto. Mas cabe dizer em minha defesa que isto é um blogue, e não um estudo prolongado e meditado, e devidamente remunerado; e aliás eu não poderia fazer outra coisa, dado que há muito se perdeu um salutar costume antigo que era o de divulgar entre a comunidade jurídica, com alguma antecedência sobre a fase propriamente legislativa, os estudos, projectos e propostas que visassem reformas deste teor.
Agora não; vigora a regra de que "o que é preciso é apanhá-los distraídos"; as reformas preparam-se clandestinamente, anunciam-se mediaticamente como factos consumados, e lançam-se para o "Diário da República" antes que alguém possa dizer seja o que for.
E há um princípio adicional: nunca reconhecer um erro. Admitir uma asneira é pecado mortal, tanto maior quanto mais caro ele for. Perguntem a qualquer advogado o que é "a reforma da acção executiva", de que o Ministério espantosamente se orgulha desde há três ministros, e ficarão com uma pequenissima ideia do que estou a dizer.
2 Comments:
Então e a a grande reforma que se traduz na MEDIAÇÃO PENAL???
Como é bom de ver, esta é, mais uma forma, de esvaziar de conteúdo os tribunais, em especial o Mº Pº, ao mesmo tempo que se arranajam mais uns lugares de MEDIADORES para os amigalhaços que, note-se bem, nem têm que ser licenciados em direito, bastará saber ler e escrever e, claro está, terem o cartão com a cor certa...
É o País que temos e que, certamente, merecemos....
Ó Manel, também tem descido o nível dos comntários que noutros tempos cabiam ao Cavaleiro de Ferreira. Agora são feitos por ignaros individuos cuja identidade não se consegue saber pela leitura dos blogues.
Ó Azinhal não me digas que querias ser tu a reformar, ouvindo apenas o Martinez.
PS - És o Azinhal que simpatiza com o PNR, que por sua vez admira o Le Pen que nos trata por "primos"?
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