sábado, março 11, 2006

Quando a setecentos oitocentos sucedia

Cantas, ó génio, como os deuses falam!
Este verso espantoso escreveu-o Bocage num soneto de homenagem a José Agostinho de Macedo. Creio que não será possível encontrar semelhante brado de admiração em toda a poesia portuguesa.
E todavia Bocage escreveu-o:
Versos de Elmiro os tempos avassalam
(Versos que imprime em si a eternidade!)
São novos estes sons na humanidade;
Cantas, ó génio, como os deuses falam!
Não fosse a pungente necessidade de ganhar para as sopas e eu mesmo me atreveria a entrar nos meandros desta geração e deste tempo que assistiu à irrupção da modernidade entre nós. Época fascinante, cheia de inquietações, entrecruzada de caminhos e de dramas individuais e colectivos – e tão mal conhecida e mal tratada.
A complexidade das relações entre o Elmano Sadino, que veio a ganhar a celebridade pelas pobres razões que continuam a ocultar a sua obra, e o Elmiro Tagídeo, esquecido e maldito pelas escolhas políticas em que mergulhou com toda a força do seu temperamento exaltado, mereciam só por si muitos tratados.
O homem de quem Bocage assim falava tinha sido seu amigo, tinha depois e durante anos sido alvo dos seus sarcasmos, para voltar de novo ao número dos amigos. Pode acrescentar-se que para além das peripécias do relacionamento pessoal, explicáveis até pela agitada vida e pelo feitio turbulento de ambos, tinha sido o seu mais severo e certeiro crítico. Censurou-lhe “a aspereza e pedantesca cerzidura de palavras antigas” que lhe afectavam alguns versos, e lamentou “quantos danos produz esta perniciosa mania!".
Ao ler hoje a poesia de Bocage que nos ficou entendem-se os reparos, e reconhece-se como estava certa a crítica. Onde se desviou da limpidez da frase para se embrenhar em cultismos escusados e forçados, Bocage perdeu e perdeu a poesia.
Mas anos antes, ao tempo da “guerra dos vates”, a inimizade acesa tinha atingido rara violência.
Na “Pena de Talião” invectivava Elmano (expulso da “Nova Arcádia”) o árcade:
Refalsado animal, das trevas sócio,
Depõe, não vistas de cordeiro a pele.
Da razão, da moral o tom que arrogas,
Jamais purificou teus lábios torpes,
Torpes do lodaçal, donde zunindo
(Nuvens de insectos vis) te sobem trovas
À mente erma de idéias, nua de arte.

E retorquia-lhe Elmiro no mesmo tom, mas curiosamente parecendo querer acentuado que o antagonismo era literário:
Tu és vadio, és magro, és pobre, és feio,
E nada disto em ti reprovo ou noto;
Mas posso emudecer quando contemplo
Que queres ser um déspoto em poesia?
No turbilhão que foram as vidas dessas duas formidáveis personalidades não espanta essa flutuação de sentimentos. Que está longe de ser caso raro: ainda agora deparava eu com extasiadas homenagens de Bocage à “maga lira de amor”, à “lira piedosa” de Curvo Semedo, esse “divino autor”, a quem uns anos antes cobria de ridículo.
(Outro a quem muito gostava eu de dedicar o tempo que não tenho: Curvo Semedo, o Belmiro Transtagano, gozou em outros tempos a glória das selectas literárias. O “La Fontaine português” lhe chamaram às vezes. Foi dos vates da Nova Arcádia um dos mais festejados, e um dos mais esquecidos ao depois. Não sei se por motivos só literários, se talvez pela “Ode na Feliz Exaltação ao Sólio Português do Senhor D. Miguel I”).
Estou porém a dispersar-me, embora entre arcadianos (queria eu dizer "árcades", Bocage não gostaria do francesismo). Acabo no entanto já a seguir, atestando que as vulgaridades de cartilha que encontramos nas sebentas não se quadram bem com a verdade. E as calúnias, ainda que correntes, não deixam de ser.
José Agostinho de Macedo, crítico de Bocage e seu adversário de alguns anos, era também seu amigo e seu admirador. Foi-o também na morte, retribuindo-lhe o alto apreço:
Rasa Campa te encobre entr’outros mortos,
Mas têm um Mausoléu, um Templo, um Busto
Na minha admiração, os teus escritos.
O que bebe no Ródano espumante,
Os Sábios d’Albion, e o douto Ibero
Te hão-de aprender de cor, enquanto o Mundo
Se lembrar de Camões, de Tasso, de Milton,
Lhe há-de lembrar também d’Elmano o Nome.

1 Comments:

At 1:58 da manhã, Blogger Mendo Ramires said...

Um interessantíssimo texto do Manuel. Precisamos da continuação, como de pão para a boca. Avante!

 

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