Três Procuradores
No meu tempo e na minha memória existem três Procuradores-Gerais da República.
Um, o primeiro, parece estar esquecido de toda a gente. O que me parece compreensível. Foi ele o Dr. Arala Chaves, e chefiou o Ministério Público durante anos cruciais da nossa história recente. Tratava-se de um senhor de fino trato, a que juntava, por educação, uma característica que se encontrava bastante vulgar em homens da sua geração: uma extraordinária reverência perante o poder, aquela convicção profunda de que o respeitinho é muito bonito. Telefonava um ministro ou um presidente e sentia-se que toda a procuradoria se desbarretava, veneradora e obrigada.
Não era por mal; mas a verdade é que com Arala Chaves, apesar do edifício constitucional e o estatuto legal do Ministério Público serem já os actuais, nunca no MP se interiorizou a noção de que aquilo era uma magistratura, e independente, e não devia obediência nem servilismo ao poder político - creio mesmo que não chegou a interiorizar-se a ideia de que o MP também fosse poder.
Vem a propósito recordar que o Ministério Público como existe é uma invenção recente: desde tempos imemoriais o MP era simplesmente um cargo vestibular, um passo necessário para quem visava ingressar na carreira da magistratura. Não era por si uma magistratura, muito menos uma instituição, muito menos um "órgão do Estado". Daqui resulta a sua extrema fragilidade, o permanente risco em que se encontra - sobretudo nos tempos que correm.
Se internamente a nova realidade do MP demorou a ser entendida e assumida, o mesmo aconteceu do lado exterior.
Lembrar alguns factos correntes nos anos de Arala Chaves, entretanto apagados das memórias pela veloz sucessão dos acontecimentos, causa uma sensação mista de incredulidade e estranheza.
Foi uma época, por exemplo, em que o Presidente Eanes levava a peito a ofensa que para ele representavam as caricaturas de Augusto Cid. Consequentemente, andava a PGR numa roda viva a instaurar processos crime em barda contra o cartoonista por causa das caricaturas, e até a apreender os livros.
Foi um período em que alguns jornais, de que bem conheci os casos de "A Rua" e de "O Diabo", eram objecto do especial melindre do poder político. Em resultado, mal as edições dos jornais saíam, nas manhãs das terças e quintas-feiras, já eram anunciados novos processos pela atentíssima PGR - assim que surgiam na rua eram lidos à lupa à procura de qualquer pretexto para perseguição criminal.
Os dois jornais que citei, e que não foram os únicos objecto de tão especiais atenções, chegaram a contar em simultâneo com um número de processos pendentes que hoje parece difícil de acreditar. As consequências são fáceis de calcular: em redacções já de si muito reduzidas, e estruturas empresariais rudimentares, não é possível aguentar uma situação em que a maior parte do tempo é perdido nos tribunais. E assim era: quando se tem praticamente duzentos processos, os que não são réus são testemunhas e a certa altura já não há mais nada para fazer senão responder em inquéritos, instruções e julgamentos, acorrer a tribunais e escritórios de advogados. Com mais algum tempo, e sejam quais forem as absolvições, uma publicação com um cerco destes não resiste. Estiola e morre.
O papel da PGR na estabilização do actual quadro de publicações da imprensa escrita não é nada dispiciendo.
Para não tornar o escrito muito extenso não adianto muito mais - nem será preciso dar o exemplo da apreensão de uma edição de "A Rua", num momento em que essas edições atingiam 100.000 exemplares, por instigação directa de um Secretário de Estado da Comunicação Social de nome Manuel Alegre, nem as condenações a prisão efectiva do director, Manuel Maria Múrias, por causa de um artiguelho em que se dizia do Primeiro-Ministro Mários Soares que era "um mentiroso relapso e contumaz" (afirmação anódina, que julgo já ter sido constatada e partilhada por todos os portugueses).
Serve este discurso para sustentar uma observação minha: nesta altura em que se aproxima o momento da designação do sucessor de Souto Moura, o modelo de relacionamento entre a PGR e a classe política visto por esta como ideal tem um exemplo de notável claridade no período Arala Chaves.
A seguir apareceu Cunha Rodrigues. Cabe referir que este foi de certo modo imposto a Eanes, por sugestão de Mário Soares que o Presidente em funções, embora contrariado (queria a continuação de Arala Chaves) não conseguiu evitar assinar: dadas as tensões existentes não queria ser acusado de abrir mais um conflito institucional.
O nome tinha sido adiantado a Soares por Almeida Santos, que o conhecia bem por o nomeado ter trabalhado com ele no ministério.
Obviamente que no espírito de Soares e de Almeida Santos não estavam apenas nem sobretudo as qualidades, de trabalho e de inteligência, que se reconheciam a Cunha Rodrigues. Para além de afrontar Eanes, teriam certamente algumas razões para pensar ir colocar um incondicional.
Importa dizer, para além de muito mais que seria oportuno dizer de Cunha Rodrigues, que essas expectativas foram frustradas.
Cunha Rodrigues veio a ser o homem que fez do Ministério Público uma verdadeira magistratura, que o institucionalizou e personalizou, que lhe deu a feição de um verdadeiro órgão do Estado, de acordo com o figurino constitucional e legal.
Com um estilo discreto e sóbrio, mas firme e rigoroso, Cunha Rodrigues fez com que desaparecesse de todo do panorama das práticas correntes aquilo que estive a relatar atrás. Ao fim de poucos anos de Cunha Rodrigues tornou-se impensável que algum titular de um cargo político levantasse o telefone para dar conta à PGR das suas mágoas com este ou aquele artigo de jornal. E tornou-se mesmo impensável que algum Procurador devesse sujeitar-se a isso.
Quanto mais não fosse por essa transformação, os actuais magistrados do MP deviam estar gratos a Cunha Rodrigues. O que têm, uma magistratura dignificada que ainda que não seja estimada é certamente temida e respeitada, devem-no a ele (às vezes tenho a impressão de que alguns não se apercebem disso).
Não é o caso de Souto Moura. Este, tendo feito a sua aprendizagem no terreno nos anos de Cunha Rodrigues, e sabendo o que sabe, tem bem presente a importância do antecessor na conquista do estatuto que o MP alcançou.
Também por isso não foi possível ao poder político, apesar das ilusões criadas pelo estilo afável e bem humorado do novo PGR, conseguir o regresso a uma normalidade moldada pelos cânones dos anos de Arala Chaves. O PGR Souto Moura, consequentemente, desiludiu muito, e muitos.
O que reforça a importância fundamental da escolha do sucessor, batalha em que estão concentradas tantas energias nos bastidores do regime.
Um, o primeiro, parece estar esquecido de toda a gente. O que me parece compreensível. Foi ele o Dr. Arala Chaves, e chefiou o Ministério Público durante anos cruciais da nossa história recente. Tratava-se de um senhor de fino trato, a que juntava, por educação, uma característica que se encontrava bastante vulgar em homens da sua geração: uma extraordinária reverência perante o poder, aquela convicção profunda de que o respeitinho é muito bonito. Telefonava um ministro ou um presidente e sentia-se que toda a procuradoria se desbarretava, veneradora e obrigada.
Não era por mal; mas a verdade é que com Arala Chaves, apesar do edifício constitucional e o estatuto legal do Ministério Público serem já os actuais, nunca no MP se interiorizou a noção de que aquilo era uma magistratura, e independente, e não devia obediência nem servilismo ao poder político - creio mesmo que não chegou a interiorizar-se a ideia de que o MP também fosse poder.
Vem a propósito recordar que o Ministério Público como existe é uma invenção recente: desde tempos imemoriais o MP era simplesmente um cargo vestibular, um passo necessário para quem visava ingressar na carreira da magistratura. Não era por si uma magistratura, muito menos uma instituição, muito menos um "órgão do Estado". Daqui resulta a sua extrema fragilidade, o permanente risco em que se encontra - sobretudo nos tempos que correm.
Se internamente a nova realidade do MP demorou a ser entendida e assumida, o mesmo aconteceu do lado exterior.
Lembrar alguns factos correntes nos anos de Arala Chaves, entretanto apagados das memórias pela veloz sucessão dos acontecimentos, causa uma sensação mista de incredulidade e estranheza.
Foi uma época, por exemplo, em que o Presidente Eanes levava a peito a ofensa que para ele representavam as caricaturas de Augusto Cid. Consequentemente, andava a PGR numa roda viva a instaurar processos crime em barda contra o cartoonista por causa das caricaturas, e até a apreender os livros.
Foi um período em que alguns jornais, de que bem conheci os casos de "A Rua" e de "O Diabo", eram objecto do especial melindre do poder político. Em resultado, mal as edições dos jornais saíam, nas manhãs das terças e quintas-feiras, já eram anunciados novos processos pela atentíssima PGR - assim que surgiam na rua eram lidos à lupa à procura de qualquer pretexto para perseguição criminal.
Os dois jornais que citei, e que não foram os únicos objecto de tão especiais atenções, chegaram a contar em simultâneo com um número de processos pendentes que hoje parece difícil de acreditar. As consequências são fáceis de calcular: em redacções já de si muito reduzidas, e estruturas empresariais rudimentares, não é possível aguentar uma situação em que a maior parte do tempo é perdido nos tribunais. E assim era: quando se tem praticamente duzentos processos, os que não são réus são testemunhas e a certa altura já não há mais nada para fazer senão responder em inquéritos, instruções e julgamentos, acorrer a tribunais e escritórios de advogados. Com mais algum tempo, e sejam quais forem as absolvições, uma publicação com um cerco destes não resiste. Estiola e morre.
O papel da PGR na estabilização do actual quadro de publicações da imprensa escrita não é nada dispiciendo.
Para não tornar o escrito muito extenso não adianto muito mais - nem será preciso dar o exemplo da apreensão de uma edição de "A Rua", num momento em que essas edições atingiam 100.000 exemplares, por instigação directa de um Secretário de Estado da Comunicação Social de nome Manuel Alegre, nem as condenações a prisão efectiva do director, Manuel Maria Múrias, por causa de um artiguelho em que se dizia do Primeiro-Ministro Mários Soares que era "um mentiroso relapso e contumaz" (afirmação anódina, que julgo já ter sido constatada e partilhada por todos os portugueses).
Serve este discurso para sustentar uma observação minha: nesta altura em que se aproxima o momento da designação do sucessor de Souto Moura, o modelo de relacionamento entre a PGR e a classe política visto por esta como ideal tem um exemplo de notável claridade no período Arala Chaves.
A seguir apareceu Cunha Rodrigues. Cabe referir que este foi de certo modo imposto a Eanes, por sugestão de Mário Soares que o Presidente em funções, embora contrariado (queria a continuação de Arala Chaves) não conseguiu evitar assinar: dadas as tensões existentes não queria ser acusado de abrir mais um conflito institucional.
O nome tinha sido adiantado a Soares por Almeida Santos, que o conhecia bem por o nomeado ter trabalhado com ele no ministério.
Obviamente que no espírito de Soares e de Almeida Santos não estavam apenas nem sobretudo as qualidades, de trabalho e de inteligência, que se reconheciam a Cunha Rodrigues. Para além de afrontar Eanes, teriam certamente algumas razões para pensar ir colocar um incondicional.
Importa dizer, para além de muito mais que seria oportuno dizer de Cunha Rodrigues, que essas expectativas foram frustradas.
Cunha Rodrigues veio a ser o homem que fez do Ministério Público uma verdadeira magistratura, que o institucionalizou e personalizou, que lhe deu a feição de um verdadeiro órgão do Estado, de acordo com o figurino constitucional e legal.
Com um estilo discreto e sóbrio, mas firme e rigoroso, Cunha Rodrigues fez com que desaparecesse de todo do panorama das práticas correntes aquilo que estive a relatar atrás. Ao fim de poucos anos de Cunha Rodrigues tornou-se impensável que algum titular de um cargo político levantasse o telefone para dar conta à PGR das suas mágoas com este ou aquele artigo de jornal. E tornou-se mesmo impensável que algum Procurador devesse sujeitar-se a isso.
Quanto mais não fosse por essa transformação, os actuais magistrados do MP deviam estar gratos a Cunha Rodrigues. O que têm, uma magistratura dignificada que ainda que não seja estimada é certamente temida e respeitada, devem-no a ele (às vezes tenho a impressão de que alguns não se apercebem disso).
Não é o caso de Souto Moura. Este, tendo feito a sua aprendizagem no terreno nos anos de Cunha Rodrigues, e sabendo o que sabe, tem bem presente a importância do antecessor na conquista do estatuto que o MP alcançou.
Também por isso não foi possível ao poder político, apesar das ilusões criadas pelo estilo afável e bem humorado do novo PGR, conseguir o regresso a uma normalidade moldada pelos cânones dos anos de Arala Chaves. O PGR Souto Moura, consequentemente, desiludiu muito, e muitos.
O que reforça a importância fundamental da escolha do sucessor, batalha em que estão concentradas tantas energias nos bastidores do regime.
1 Comments:
Meu Caro Manuel:
Creio que à Sua análise gostaria de acrescentar dois pontos. A reverência do Dr. Arala Chaves pelo Poder, que bem referiu, terá levado a consagrar juridicamente, pelo organismo por ele chefiado, a tese sobre Camarate que mais convinha aos políticos e cuja procura da verdade só décadas depois seria consagrada, quando já não levantaria muitas ondas.
O Dr. Cunha Rodrigues é de facto um homem muito inteligente e que procurou a independência dos seus face aos políticos. Mas fê-lo, a meu ver, antecipando as demandas destes, ao decidir, sistematicamente por não-acusação em quase todos os casos delicados. Evitou as interferências à custa da passividade.
Abraço.
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