Fim-de-semana em New York
Para que não se perca nas páginas ignotas do obscuro semanário que ninguém lê, reproduzo aqui uma crónica de Jaime Nogueira Pinto onde anota as impressões de viagem, no regresso de Nova Iorque. Com os melhores cumprimentos ao Expresso, e votos de prosperidade. Não tem de quê.
AMÉRICA: RADICAIS LIVRES
Fim-de-semana em Nova Iorque: as avenidas rasgadas norte-sul, com os «yellow cabs» precipitando-se do «upper east side» para «down-town», como uma força de blindados ligeiros à desfilada, ao abrir do verde; lá em cima nuvens brancas, douradas, ensolaradas, atrás do cinzento forte dos arranha-céus; na rua, estas multidões multiétnicas culturais, este «bom dia Babilónia» das elegantes entre o Pierre e o Metropolitan Museum, dos polícias negros e dos hispânicos obesos de Times Square aos visitantes «cowboyescos» do Sul e do Oeste profundos, aos mendigos das escadas de St. Patrick, tudo nos mesmos passeios, nos mesmos espaços, à porta da «sopa dos pobres» ou do Bergdorff-Dorman. Esta é a cidade da nossa memória do cinema - com Brooklyn, New Jersey, Long Island do W. Allen de Radio Days e e Oedipus Wrecks, das «tribos» e gangues de Cotton Club e Hoodlum e, sobretudo, daquele Verão longínquo de 1945, em que D. Vito Corleone casou a fIlha Lucy e Michael Corleone voltou da guerra fardado de capitão dos «marines» ...
Duas exposições, uma no Moma - de Edward Munch, The Modern Life of the Soul - sobre o pintor norueguês de O Grito, um itinerário dos temas e fantasmas de um Norte burguês, de luzes, noites e praias frias, com uma abertura ao fantástico e a uma pintura metafísica, simbólica, entre os pré-rafaelitas e De Chirico. No Metropolitan, um paisagista inglês do século XIX, Samuel Palmer, pintor do campo, das nuvens, de temas bíblicos e pastorais, um rigor renascentista de traço e uma espiritualidade pré-vitoriana, em que a ordem externa das coisas reproduz a ordem interior do autor e da Criação.
Esta ordem e harmonia não existem hoje na política americana. Em Washington, já numa Primavera quente, encontro uma sociedade ideologicamente dividida, com fracturas por «causas» ; enquanto na Europa reina o «centrão» social-democrático, do centro da esquerda ao centro da direita, meio-céptico, meio-capitalista, meio-social, meio-político-correcto, não-afirmativo, «federal» e «atlântico» quanto baste, e sobretudo sem compromisso fora das banalidades admissíveis e admitidas por todos, a América é hoje uma sociedade ideologicamente plural, isto é, com alternativas: dos «nacional-isolacionistas» anti-Bush e antiglobalização, como Pat Buchanan e o seu American Conservative, aos radicais comunistas à Chomsky; dos judeus conservadores do «Commentary» aos judeus liberais e anti-sionistas tão fortes nas artes e no cinema; dos intelectuais cristãos de First Things, de Richard John Neuhaus aos esquerdistas do «The Nation», aos liberais intervencionistas da «New Republic», aos neoconservadores da «Weekly Standard», ou aos direitistas do «American Spectator»; toda esta gente, pensa, escreve, publica, discute, debate, combate, por ideias, afirmando-as com radicalidade e frontalidade. Livremente.
Um dos exemplos deste clima é a «viragem» de Francis Fukuyama, celebrizado nos finais da Guerra Fria pela sua teoria-profecia de um novo «fim-da-História», actualizando o Hegel pos-Congresso de Viena. A questão é que Fukuyama - um dos símbolos do movimento neoconservador, identificado por ex-trotskystas vindos para a direita, como Irving Kristol e Norman Podhoretz, ou homens políticos das Administrações Reagan e Bush Jr. como Richard Perl e Paul Wolfowitz - rompeu com a «família»; fê-lo em America at the Crossroads (Yale University Press, New Haven, 2006), o que lhe valeu duríssimas e até injuriosas críticas de um Charles Krauthamer ou uma educada mas dura recensão de Aaron L. Friedberg, no «Commentary» de Abril.
Porque entre as «direitas» americanas há muitas e diversas posições quanto à política externa e ao Iraque: os realistas da escola de Kissinger e de Brent Showcroft, que escreve em «The National Interest», acham os neoconservadores uns missionários fanáticos e falhados da democracia. Os conservadores tradicionais respeitam a religião e a história (dos outros, incluindo dos Árabes) mas hesitam entre os «neocons» e os «realistas». Mais radicais, os nacionais-populistas, ao modo de Pat Buchanan, consideram a guerra do Iraque uma estupidez inútil e defendem o «America first» integral. E uma figura de referência, William B. Buckley, o fundador da «National Review», confessa que se soubesse o que sabe hoje, não teria apoiado a guerra do Iraque. Os neoconservadores, no «Commentary» de Neil Kozodoy e no «Weekly Standard» de William Kristol, continuam firmes no princípio da democratização global, como interesse dos Estados Unidos, superpotência democrática. Contam com solidariedades fortes, como o historiador militar Victor Davis Hanson; ou, na direita conservadora, com outra referência central do movimento - Ed Feulner, presidente da Heritage Foundation.
A divisão ideológica e estratégica é profunda na direita, mas, entre os democratas, também se repetem estas linhas divisórias quanto às guerras do Islão, de Israel, e às bases de uma política internacional (e de uma geopolítica) norte-americana para o século XXI que tenha resposta para questões como o que fazer com o Islão, a China, a Rússia e Israel; ou a identidade americana, levantada pela imigração. Leiam-se, por exemplo, «The New Yorker» e «Atlantic ... »
Há 40 anos, esta «Life of the Mind», esta vida das ideias e das contra-ideias, esta paixão espiritual pelas causas, ou, para os ideologicamente mais cépticos, a preocupação e o gosto de ler, de pensar, de racionalizar, de debater, de atacar, de defender, alternativas sociais, personalidades históricas, princípios abstractos, era mais um apanágio da Europa e da política europeia. E dos americanos, dizíamos que democratas e republicanos eram mais ou menos a mesma coisa e que as suas discussões políticas se ficavam por subtis diferenças na política exterior, ou então por mais ou menos «country club» ou «main street», na origem ou no enquadramento social.
Hoje, trocaram-se as realidades e os papéis: os moderados conformados do centrão são os europeus. Na América vivem os radicais livres. Sorte deles!
Duas exposições, uma no Moma - de Edward Munch, The Modern Life of the Soul - sobre o pintor norueguês de O Grito, um itinerário dos temas e fantasmas de um Norte burguês, de luzes, noites e praias frias, com uma abertura ao fantástico e a uma pintura metafísica, simbólica, entre os pré-rafaelitas e De Chirico. No Metropolitan, um paisagista inglês do século XIX, Samuel Palmer, pintor do campo, das nuvens, de temas bíblicos e pastorais, um rigor renascentista de traço e uma espiritualidade pré-vitoriana, em que a ordem externa das coisas reproduz a ordem interior do autor e da Criação.
Esta ordem e harmonia não existem hoje na política americana. Em Washington, já numa Primavera quente, encontro uma sociedade ideologicamente dividida, com fracturas por «causas» ; enquanto na Europa reina o «centrão» social-democrático, do centro da esquerda ao centro da direita, meio-céptico, meio-capitalista, meio-social, meio-político-correcto, não-afirmativo, «federal» e «atlântico» quanto baste, e sobretudo sem compromisso fora das banalidades admissíveis e admitidas por todos, a América é hoje uma sociedade ideologicamente plural, isto é, com alternativas: dos «nacional-isolacionistas» anti-Bush e antiglobalização, como Pat Buchanan e o seu American Conservative, aos radicais comunistas à Chomsky; dos judeus conservadores do «Commentary» aos judeus liberais e anti-sionistas tão fortes nas artes e no cinema; dos intelectuais cristãos de First Things, de Richard John Neuhaus aos esquerdistas do «The Nation», aos liberais intervencionistas da «New Republic», aos neoconservadores da «Weekly Standard», ou aos direitistas do «American Spectator»; toda esta gente, pensa, escreve, publica, discute, debate, combate, por ideias, afirmando-as com radicalidade e frontalidade. Livremente.
Um dos exemplos deste clima é a «viragem» de Francis Fukuyama, celebrizado nos finais da Guerra Fria pela sua teoria-profecia de um novo «fim-da-História», actualizando o Hegel pos-Congresso de Viena. A questão é que Fukuyama - um dos símbolos do movimento neoconservador, identificado por ex-trotskystas vindos para a direita, como Irving Kristol e Norman Podhoretz, ou homens políticos das Administrações Reagan e Bush Jr. como Richard Perl e Paul Wolfowitz - rompeu com a «família»; fê-lo em America at the Crossroads (Yale University Press, New Haven, 2006), o que lhe valeu duríssimas e até injuriosas críticas de um Charles Krauthamer ou uma educada mas dura recensão de Aaron L. Friedberg, no «Commentary» de Abril.
Porque entre as «direitas» americanas há muitas e diversas posições quanto à política externa e ao Iraque: os realistas da escola de Kissinger e de Brent Showcroft, que escreve em «The National Interest», acham os neoconservadores uns missionários fanáticos e falhados da democracia. Os conservadores tradicionais respeitam a religião e a história (dos outros, incluindo dos Árabes) mas hesitam entre os «neocons» e os «realistas». Mais radicais, os nacionais-populistas, ao modo de Pat Buchanan, consideram a guerra do Iraque uma estupidez inútil e defendem o «America first» integral. E uma figura de referência, William B. Buckley, o fundador da «National Review», confessa que se soubesse o que sabe hoje, não teria apoiado a guerra do Iraque. Os neoconservadores, no «Commentary» de Neil Kozodoy e no «Weekly Standard» de William Kristol, continuam firmes no princípio da democratização global, como interesse dos Estados Unidos, superpotência democrática. Contam com solidariedades fortes, como o historiador militar Victor Davis Hanson; ou, na direita conservadora, com outra referência central do movimento - Ed Feulner, presidente da Heritage Foundation.
A divisão ideológica e estratégica é profunda na direita, mas, entre os democratas, também se repetem estas linhas divisórias quanto às guerras do Islão, de Israel, e às bases de uma política internacional (e de uma geopolítica) norte-americana para o século XXI que tenha resposta para questões como o que fazer com o Islão, a China, a Rússia e Israel; ou a identidade americana, levantada pela imigração. Leiam-se, por exemplo, «The New Yorker» e «Atlantic ... »
Há 40 anos, esta «Life of the Mind», esta vida das ideias e das contra-ideias, esta paixão espiritual pelas causas, ou, para os ideologicamente mais cépticos, a preocupação e o gosto de ler, de pensar, de racionalizar, de debater, de atacar, de defender, alternativas sociais, personalidades históricas, princípios abstractos, era mais um apanágio da Europa e da política europeia. E dos americanos, dizíamos que democratas e republicanos eram mais ou menos a mesma coisa e que as suas discussões políticas se ficavam por subtis diferenças na política exterior, ou então por mais ou menos «country club» ou «main street», na origem ou no enquadramento social.
Hoje, trocaram-se as realidades e os papéis: os moderados conformados do centrão são os europeus. Na América vivem os radicais livres. Sorte deles!
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home