terça-feira, abril 25, 2006

O 25 DE ABRIL

Enquanto o país se distrai, de cravo piroso ao peito e com os dedos em V, ao som das ladainhas da vulgata, encontrei um editorial com que Manuel Maria Múrias assinalou o 25 de Abril de 1977.

O essencial do 25 de Abril é a descolonização, o esfacelar dramático do Portugal de sempre. O mais são desculpas. O que os revolucionários pretendiam fundamentalmente era livrarem-se do Ultramar. A três anos de distância, e como simples verificação histórica, bem se pode dizer que o 25 de Abril se fez porque as Forças Armadas recusavam bater-se Além-Mar. O que dá carácter revolucionário é isso: um exército militarmente vitorioso, rende-se politicamente, vencido por dentro pela subversão dos valores patrióticos.
As alterações de estrutura social subsequentes são consequentes do processo da descolonização, e são formais: — onde estavam uns mandantes passaram a estar outros; saíram 180 presos das cadeias políticas, entraram cerca de 4.000; os polícias foram presos, os presos foram polícias. Como dantes, as oligarquias no poder bloquearam para si o processo eleitoral, servindo-se partidariamente das estruturas administrativas; como antigamente quem não aceita os fundamentos de ideologia dominante é perseguido, e marginalizado, e punido pela lei. O Estado novo defende-se como o Estado velho. O que era substancial ao outro regime é substancial a este. Nem se alterou a semântica. Variam as formas, variam as práticas, variam os homens, que são piores. Essencialmente só Portugal se alterou: não vivemos hoje a mesma nação, nem encaramos o mesmo futuro. Perdemos um projecto nacional. Somos outros. A revolução está aí. Trágica. Sangrenta. Se calhar, mortífera. Parafraseando o heróico general Lourenço: — oscilaram as Forças Armadas, oscilou Portugal.
Por simples decisão administrativa, como quem apaga uns riscos no mapa, desfez-se o Portugal antigo, mais velho que a maioria dos estados do mundo. As Forças Armadas que eram as garantes de integridade territorial da Pátria deixaram de a garantir — porque da Pátria passaram a ter um conceito estreitamente ideológico. Portugal, no seu parco pensamento, não seria Portugal se não fosse democrático. O que nos definia como nação: — a terra repartida lá longe, as gentes diferentes, a língua rica, a história antiga, o hábito secular de viver em comum, tudo se desvaneceu. Portugal passou a ser só um regime, uma fórmula político-constitucional, arbitrária por simples decisão legal, ao sabor dos ventos da história, das conveniências do momento, dos modismos doutrinários. Assim mesmo, milhões de pessoas deixaram de ser portuguesas, porque uns tantos, muito poucos, lhes retiraram a nacionalidade.
Nós não temos qualquer experiência histórica de sermos Portugal sem Ultramar. Vamos recomeçar-nos no desconhecido. O que nos livrou da atracção magnética da meseta castelhana foi a nossa visão terráquea do Oceano. Olhámos as águas como se fossem terra. Tudo o que estava para além do mar éramos nós. Não tem outro fundamento a polémica entre Grotius e o Padre Serafim de Freitas. Um simples encontrão na porta do Quartel do Carmo destruiu-nos. Regressámos ao ponto alpha da nossa criação nacional — e a partir do momento em que tudo pode ser ideologicamente discutido, (o dever criticamente assumido deixou de ser dever), discutimos Deus, discutimos a Pátria, discutimos a Família — temos o direito de discutir a nossa própria existência como Estado soberano.
A quem interessa continuar Portugal? Separado do melhor do seu corpo — Portugal existe? Desde que a conservação do Império foi apenas uma teimosia estúpida de Salazar — não será teimosia, estúpida também, manter este arremedo de soberania que temos agora, constantemente a pedir dinheiro para matar a fome? Se aos açorianos e aos madeirenses interessar mais, por expressa e livre vontade sair, juntar-se aos americanos, temos o direito ideológico de os impedir? Se dermos a independência a Cabo Verde e a S. Tomé, ilhas desertas achadas no mar e que povoámos, e que cultivámos, em que nos fundamentamos intelectualmente para conservar portuguesas a Madeira e os Açores?
Envolvidos que estivemos numa guerra revolucionária conduzida à escala planetária pela União Soviética e pelos Estados Unidos, perdemo-la. Mal acabada estava levantaram-se nas ilhas movimentos separatistas que, tal qual os africanos, sabemos serem comandados pelo estrangeiro. Modestos, românticos, ligeiramente estúpidos, começam eles com as mesmas possibilidades dos antecessores. Se negociámos com os terroristas de África, porque não negociaremos com os terroristas das ilhas? Washington de bom grado juntaria mais uma ou duas estrelas à sua bandeira — se tais estrelas fossem as bases altamente estratégicas do Atlântico. Se Portugal é uma democracia, se o seu território é apenas o que a vontade maioritária dos seus habitantes quiser que seja — porque é que não nos podemos afastar da Madeira e dos Açores?
Por motivos históricos? Por razões de ordem linguística? Pelo hábito que temos de viver politicamente em comunidade? Menos de um século separa o achamento de S. Miguel da descoberta do caminho marítimo para a Índia. Culturalmente, estamos tão chegados a Goa, como estamos aos Açores. Apesar disso, Mário Soares, assim que pôde, separou-nos juridicamente do Estado da Índia, sem dar cavaco a ninguém. Não terá ido agora aos Estados Unidos fazer a mesma coisa com os Açores?
O precedente aberto em África pode continuar-se com tudo o que resta de Portugal. O consentimento legal duma Liga Iberista que, afanosamente, pede a nossa integração política num contexto federativo espanhol, não é já o princípio do fim?
Aqui há semanas, numa reunião no Norte, o director deste jornal tentou expor com frieza as possibilidades que, através de Melo Antunes ou de qualquer outro, tem o Partido Comunista de se achegar ao poder. Alguém, com ar determinado, logo a seguir afirmou:
— Proclamaremos a independência do Norte — se tal acontecer!
Não têm esse direito as gentes nortenhas? Se Portugal já é só um regime, se tudo o que é português se identifica com a democracia, se em Lisboa estiver instalado um governo antidemocrático — não tem o Porto o direito de continuar a ser o verdadeiro Portugal? Não pretendeu isso Vasco da Gama Fernandes?
Ao separarmo-nos de África, separámo-nos de nós. O verdadeiro significado da revolução do 25 de Abril é esse. O resto são desculpas. Dominados que fomos, durante uns tempos, pela Internacional Comunista — somo-lo agora pela Internacional Socialista. O Internacionalismo proletário que o Partido Socialista representa em Portugal transcende a própria nacionalidade. Os trabalhadores não têm pátria; Mário Soares, como bom intelectual proletaróide, só pode atender aos interesses da classe operária. O que se determinar em Amsterdão é o que se fará em Portugal. Na verdade, nós já perdemos a soberania; dependemos do que quiser Willy Brandt. Tudo é possível, a partir do momento em que se assenta a unidade das pátrias na ideologia do seu regime. Assim o quiseram os revolucionários de 1974. Assim o temos.
Dizia Renan que ter glórias comuns no passado, uma vontade comum no presente; ter feito juntos grandes coisas, querer fazer outras maiores ainda; são as condições essenciais para ser um povo. No passado uma herança de glórias e remorsos; para o futuro o mesmo projecto a fazer. A existência duma nação é um plebiscito quotidiano.
Os portugueses deixaram de ter glórias comuns do passado e uma vontade comum para o presente. Quem nos governa deseja, ardentemente, esquecer o passado — e, para o futuro, pretende apenas arranjar umas massas. Não há um projecto nacional. Sobreviver-se-á?
A grande revolução do 25 de Abril limitou à pergunta dramática e sacramental: — Sobreviver-se-á? Não virá por aí qualquer outro heróico grupo armado que o liberte deste pesado fardo de ser Estado soberano? Em nome da Liberdade, da Democracia, da Paz mundial e da Europa dos Trabalhadores?
Manuel Maria Múrias
(In A Rua, n.º 55, pág. 3, 21.04.1977)

6 Comments:

At 4:22 da tarde, Blogger Francisco Múrias said...

Que bem que o meu pai escrevia

 
At 12:05 da manhã, Blogger Mendo Ramires said...

Superior!

 
At 11:14 da tarde, Blogger Carlos Sério said...

A 25 de Abril de 1974 e nos anos imediatos que se lhe seguiram, o cravo vermelho na lapela neste dia comemorativo traduzia, não somente o conforto da conquista da liberdade mas, sobretudo, a esperança do desenvolvimento económico e social do País.

A liberdade não constitui um fim em si mesmo, mas um meio para a melhoria das condições de vida dos cidadãos. A liberdade é condição necessária ao desenvolvimento estrutural, económico e social de um país, mas não é uma condição suficiente.

Ora, as esperanças acalentadas pelo 25 de Abril em proporcionar um maior bem estar aos portugueses estão longe de se encontrarem satisfeitas.
Muito pelo contrário, Portugal aparece hoje na cauda da Europa, com os mais fracos índices de desenvolvimento. Com 10 milhões de habitantes, Portugal possui 2 milhões de pobres e uma distribuição de riqueza que, ano após ano, acentua as desigualdades sociais.

Os obreiros dos desequilíbrios estruturais, das desigualdades sociais que se agravam e do frágil e distorcido desenvolvimento económico, não podem ser outros senão os políticos que conquistaram o poder no 25 de Abril de 1974 e nele se têm perpetuado. Bem instalados na vida, com o poder em suas mãos, é natural que se apresentem felizes, despreocupados e sorridentes de cravo vermelho na lapela.
De Almeida Santos e Vasco Lourenço passando por João Cravinho e Jorge Coelho até Manuel Alegre e Jaime Gama, a todos, a vida nestes últimos 32 anos lhes poderia ter corrido melhor.

Um 25 de Abril inócuo, um cravo vermelho como símbolo dessa inocuidade, como símbolo de uma liberdade castrada de seus objectivos, eis o que se afigura hoje aos portugueses o ritual comemorativo e repetitivo na Assembleia da República.

 
At 5:18 da manhã, Blogger Marcos Pinho de Escobar said...

Brilhante! A síntese perfeita da barbaridade que caiu como bomba nuclear na Terra de Santa Maria.
Simplesmente genial era o Múrias. E que falta esta cabeça e esta vontade fazem falta ao que resta de Portugal!

 
At 12:24 da tarde, Blogger Pois said...

Este comentário foi removido pelo autor.

 
At 12:28 da tarde, Blogger Pois said...

Que o País está podre, esta..

Mas o povinho continua a rastejar, choramingando, e mendigando um TACHO!

Porugal JÁ ERA, na minha opinião.

Oxalá eu esteja errado, e isto se endireite... Mas como?

 

Enviar um comentário

<< Home