segunda-feira, abril 10, 2006

O enigma português

O título não evoca a obra homónima de Francisco da Cunha Leão (que todavia aproveito para recomendar, é leitura de grande valia e encontra-se à disposição na Guimarães).
O enigma a que faço referência respeita a outors aspectos singulares da existência portuguesa, que não as essências procuradas pelo sábio pensador.
Estou a lembrar o fenómeno a que com rotineira indiferença se chama a expansão portuguesa.
Pensemos nisto: entrados no século quinze, a população do território português, descontadas as mulheres, as crianças, os velhos, os doentes e outros grupos em princípio afastados da aventura da partida, permitia considerar um número de homens válidos e em idade de levantar voo estimável em quantos milhares? Pois, de acordo com qualquer estudo demográfico, o total seria mais ou menos o equivalente a um Estádio da Luz, dos antigos, em dia de enchente.
Não estou a exagerar: cem a cento e cinquenta mil homens...
Não se esqueça que nem todos poderiam abalar: havia que manter isto a funcionar, dos campos às cidades, e manteve-se, mais ou menos.
Todavia, ao que se assistiu? No espaço de um século os portugueses, partindo de uma plataforma insignificante no extremo da Europa, alargaram de uma forma nunca vista na História os horizontes do mundo conhecido, transformando por completo a perspectiva que se tinha do próprio mundo (seja na Europa seja na China, não vale argumentar com o eurocentrismo da análise). Não há nada de semelhante na História, os romanos dominaram o mundo mas era o pequeno mundo então conhecido, e demoraram mil anos, os gregos navegaram por todos os lados do universo que consideravam existir, mas era pouco mais do que o Mediterrâneo, e assim por diante.
Em poucas décadas, um pequeno povo com escassos meios tocou todos os pontos do universo, desde a próxima África até às longínquas paragens da Ásia ou da América. De Ceuta ao Japão, do Brasil a Moçambique, à Índia, à China ou à Áustrália, não há sítio onde não existam marcas da epopeia portuguesa.
E acrescente-se que em geral são marcas fortes, e de singularidade indiscutível: comunidades inteiras das costas do Malabar ou de Ceilão, gentes de Malaca ou de Sião, em certos casos com uma história de contacto com os portugueses que não excedeu algumas décadas, ficaram até hoje a falar dialectos lusos, e a determinar a sua identidade por essa longínqua ancestralidade.
Tudo visto, o fenómeno da expansão portuguesa é da ordem do prodigioso; a única imagem que me ocorre é a da explosão nuclear, como se uma força desconhecida e inaudita tivesse aqui sido despoletada e num instante tivesse atingido na sua irradiação todos os cantos do planeta.
Estamos ou não perante um enigma?
Agora outro, o segundo aspecto a interrogar-nos e a intrigar-nos com a face muda do mistério.
Atingido o auge, no século dezasseis em que o seu poder parecia tocar as nuvens, nesse império em que o Sol nunca se punha, entre os portugueses criou forma a obsessão da decadência. Atente-se em Sá de Miranda (esse formidável reaccionário que antecipa de séculos vários temas essenciais da reacção pós-revolucionária), atente-se em Camões, e lá encontramos a amargura do "finis patriae".
Essa angústia da Pátria que nos morre nunca mais abandonará a primeira linha da cultura portuguesa. Nem nos séculos XVII e XVIII, nem mais próximo de nós, com Antero ou com Junqueiro, ou com outros vultos contemporâneos que não vale a pena citar.
Portugal está a morrer...
Recordo-me de uma vez, não sei bem se nos encontros ao serão no Palácio Quintela, onde António Quadros franqueava generosamente as portas do IADE, ou nos almoços periódicos na Mimosa do Camões, estar a dissecar este tema com Orlando Vitorino e este com um sorriso irónico ter sugerido que aí havia gato: tanto tempo a morrer, calhando já era altura de começarmos a pensar... Naturalmente, não fui capaz de afastar a observação e guardei-a como interrogação.
Tem a sua pertinência: com tanto tempo a morrer, é caso para indagar se a doença será mortal, ou qual será realmente a doença.
Há pouco tempo, conversava com Manuel Patrício, de disposição muito carregada, e a ver se lhe mudava o ânimo expus-lhe estas dúvidas. Sem resultado: abanou a cabeça, com um semblante nada receptivo a visões optimistas, e foi-me dizendo que não, provavelmente esse tempo todo só queria dizer que a morte era muito lenta.

1 Comments:

At 1:32 da tarde, Blogger Combustões said...

Brilhante.

 

Enviar um comentário

<< Home