CATARINA DE SENA
Um artigo de Gustavo Corção, como sempre precioso de ensinamentos; a arte e a profundidade, reunidos na prosa do grande escritor católico.
No dia 30 de abril a Igreja comemora a festa de Santa Catarina, que viveu numa das épocas mais perturbadoras da história do Ocidente tanto para o mundo, que nos fins do século XIV se despedia da civilização medieval e preparava os critérios de uma nova civilização, como para a Igreja, que sofria a divisão, o cisma, a crise do papado, e já começava a sentir as aflições que cem anos mais tarde produziriam a Reforma.
Tudo foi paradoxo e contraste na vida de Catarina. Alma contemplativa, nasceu numa turbulenta família italiana e teve de se envolver nos mais intrincados problemas da política de seu tempo. Humilde filha de um tintureiro de Sena, tornou-se pela força das circunstâncias conselheira dos Papas, diretora espiritual de seu diretor, e mãe de sua mãe. Analfabeta, deixou no seu Epistolário e no Diálogo, obras ditadas aos fiéis secretários que se revezavam na árdua tarefa de acompanhar os passos e os ensinamentos da santa, uma doutrina que até hoje serve de guia espiritual para muitas almas que procuram o caminho do Reino de Deus. Realmente, tudo foi contraste na vida da moça impetuosa que é a Joana d’Arc da Itália e que nada fica a dever à heroína francesa.
Lembrei-me de escrever estas linhas de homenagem à dolce mamma Catarina, porque ultimamente tenho pensado muito na moleza e na tolerância dos tempos modernos, que nos mais altos lugares são apregoados como virtudes máximas. Apeguemo-nos à adamantina dureza da santidade. Santa Catarina de Sena jamais abriria a boca, jamais emprestaria o seu sorriso de virgem ardorosa e pura para pronunciar melosas declarações de incondicional tolerância e falsa bondade. Catarina de Sena tinha ódios. Santa Catarina de Sena não saberia, jamais, fazer um programa de promoção do Reino de Deus naquele tom de amaciamento da vontade e de derrame sentimental. O que nos ensinam os santos, com palavras e obras, é que não basta o sentimento enternecido, nem basta traçar na areia a tênue linha que separa o bem e o mal. O que nos ensinam os santos é que é preciso, resolutamente, entre os céus e os infernos, erguer muralhas de ódio, e cavar abismos de amor. E o que nos ensina com particular insistência essa moça de vinte e poucos anos, Catarina, filha do tintureiro Benincasa, de Sena, é que devemos andar como os paladinos do Santo Sepulcro, entre duas cruzes, no peito e nas costas: a cruz do santo ódio e a cruz do santo amor. E é por isso que a Igreja, no dia de sua festa, dizia no Intróito da missa: Dilexisti justitiam et odisti iniquitatem, fórmula que bem exprime o claro-escuro, ou melhor, o preto-e-branco da vontade bem polarizada pelos mandamentos de Deus.
Santa Catarina de Sena poderia ser chamada a pregadora da santa nitidez. E não só a da vontade, a do preto-e-branco do ódio e do amor, mas também a da inteligência. Toda a doutrina ensinada por Catarina de Sena gira em torno de dois eixos principais que têm particular importância em nossos dias. O primeiro, relativo à ordem do conhecimento, consiste no preceito: “conhece-te a ti mesmo, em Deus”, que Etienne Gilson chamou de socratismo cristão, e que marca toda a espiritualidade da Idade Média, desde Agostinho até Catarina. O segundo consiste no preceito de combater e esmagar a vontade própria, fonte e origem de todos os pecados.
De início convém notar que o “conhece-te a ti mesmo” de Catarina de Sena não tem o sentido de introspecção psicológica, nem o mais alto de exame de consciência. Ambos são bons e úteis, cada um em sua ordem, mas o conhecimento básico que Catarina tem como preceito é de ordem ainda mais elevada. É preciso que a alma se conheça em Deus, que se reconheça como criatura, como ser sustentado pela Causa Primeira, mantido na existência pela vontade criadora de Deus. É preciso que a alma se ponha diante do Senhor e que, nesse refulgente espelho, descubra o seu Nada, o Não-Ser que só é ser por favor, por misericórdia, por bondade de Deus.
Será útil, a cada um de nós, o conhecimento de sua fisionomia psíquica e de sua situação moral, mas nada é menos socrático e menos freudiano do que o conselho de Catarina de Sena. Tanto o antigo como o moderno, cada um em sua pauta cultural, anunciavam a recuperação do homem por uma tomada de consciência e por uma recuperação de si mesmo por seu próprio esforço. Há um racionalismo antropocêntrico em Sócrates e em Freud, que é o oposto do ensinamento catarineano. O “conhece-te a ti mesmo” de Catarina é um conhecimento teologal, um conhecimento em confronto com Deus, um conhecimento que coloca a recuperação do homem num ato primeiro de renúncia, de apagamento e de humildade.
Não se trata de apreciar as peculiaridades de meu ser singular concreto, não se trata de começar por esse tipo de experiência que está na base de todos os existencialismos modernos, e sim de uma experiência fundamental, primeira, em que a alma se reconhece existente por um ato da vontade criadora de Deus, e daí, dessa primeira confrontação tira a fundamental atitude para a vida de relação com o mundo e com seu Criador. Não se diga, porém, que o “conhece-te a ti mesmo” catarineano é uma fórmula puramente essencial, puramente relativa à natureza universal do homem criado à imagem e semelhança de Deus. Não se trata de pensar somente em termo universais, assim como quem diz: o homem é uma criatura de Deus. Não. Trata-se de uma experiência mística, com toda a força existencial, com todas as dimensões do presente concreto e prático.
Quem se conhece, conheça-se a si mesmo, João ou Maria, conheça-se como alma existente diante de Deus. E descubra que é Nada se pretende por si mesma a ser alguma coisa; e reconheça que deve tudo, não somente os adjetivos que a adornam como também o substantivo nuclear de seu ser. A fórmula catarineana não exclui outros conhecimentos mesmos e posteriores, mas exclui categoricamente a primazia de qualquer outro conhecimento reflexo que não seja feito em confronto com o Ser divino.
Mais de uma vez Catarina adverte os seus discípulos contra as introspecções puramente humanas que só geram pecado e confusão. Para descermos aos nossos porões, para nos apalparmos e nos descobrirmos, é preciso antes de qualquer passo inseguro, acendermos a vela da Fé, o lumen Christi que vem da mesma fonte de onde emanou o nosso ser.
Repouse, leitor, o espírito perturbador pelas agitações do dia e pondere bem o que devemos a Deus. Aos homens devemos muita coisa que nos qualifica e nos valoriza. Aos nossos próprios pais devemos um dos mais importantes elos, mas ainda um elo da cadeia que se prolonga e que deve estar presa em algum Ser imóvel e não causado. A outros homens devemos coisas menores e mais superficiais: um favor, um ensinamento, um conselho, uma ajuda. A Deus devemos o existir que é coisa mais ampla e fundamental do que o viver. E é essa meditação que Catarina coloca na base de sua doutrina. “Conhece-te a ti mesmo, em Deus” é um primeiro ato de humildade, um primeiro e fundamental juízo de valor.
O mundo, depois de Catarina de Sena, seguiu caminhos diferentes. Não foi “na doce cela do conhecimento de si mesmo e da bondade de Deus” que o mundo ocidental construiu a nova civilização do individualismo orgulhoso. Estamos hoje em outro ponto da história em que, depois de tantas e tão cruéis experiências, talvez se encontrem ouvidos para a doutrina que coloca o homem no seu justo lugar: elevado, se ergue as mãos para Aquele que o pode enaltecer; rebaixado, se por si mesmo pretende subir. Há muitos problemas materiais e espirituais no mundo de hoje. Há milhares de problemas técnicos, desde o aproveitamento da energia nuclear até o aumento da produtividade agrícola. Há problemas políticos e culturais; há anseios de novas formas no domínio das artes, e anseios de novas experiências em todos os domínios da vida. Uma coisa, entretanto, permanece invariável. E enquanto não soubermos reconhecer a verdadeira colocação de nosso ser, enquanto não soubermos o que somos e o que não somos, vãs serão todas as pesquisas do universo e, de todos os esforços de todos os estudos, só tiraremos pecado e confusão.
No dia 30 de abril a Igreja comemora a festa de Santa Catarina, que viveu numa das épocas mais perturbadoras da história do Ocidente tanto para o mundo, que nos fins do século XIV se despedia da civilização medieval e preparava os critérios de uma nova civilização, como para a Igreja, que sofria a divisão, o cisma, a crise do papado, e já começava a sentir as aflições que cem anos mais tarde produziriam a Reforma.
Tudo foi paradoxo e contraste na vida de Catarina. Alma contemplativa, nasceu numa turbulenta família italiana e teve de se envolver nos mais intrincados problemas da política de seu tempo. Humilde filha de um tintureiro de Sena, tornou-se pela força das circunstâncias conselheira dos Papas, diretora espiritual de seu diretor, e mãe de sua mãe. Analfabeta, deixou no seu Epistolário e no Diálogo, obras ditadas aos fiéis secretários que se revezavam na árdua tarefa de acompanhar os passos e os ensinamentos da santa, uma doutrina que até hoje serve de guia espiritual para muitas almas que procuram o caminho do Reino de Deus. Realmente, tudo foi contraste na vida da moça impetuosa que é a Joana d’Arc da Itália e que nada fica a dever à heroína francesa.
Lembrei-me de escrever estas linhas de homenagem à dolce mamma Catarina, porque ultimamente tenho pensado muito na moleza e na tolerância dos tempos modernos, que nos mais altos lugares são apregoados como virtudes máximas. Apeguemo-nos à adamantina dureza da santidade. Santa Catarina de Sena jamais abriria a boca, jamais emprestaria o seu sorriso de virgem ardorosa e pura para pronunciar melosas declarações de incondicional tolerância e falsa bondade. Catarina de Sena tinha ódios. Santa Catarina de Sena não saberia, jamais, fazer um programa de promoção do Reino de Deus naquele tom de amaciamento da vontade e de derrame sentimental. O que nos ensinam os santos, com palavras e obras, é que não basta o sentimento enternecido, nem basta traçar na areia a tênue linha que separa o bem e o mal. O que nos ensinam os santos é que é preciso, resolutamente, entre os céus e os infernos, erguer muralhas de ódio, e cavar abismos de amor. E o que nos ensina com particular insistência essa moça de vinte e poucos anos, Catarina, filha do tintureiro Benincasa, de Sena, é que devemos andar como os paladinos do Santo Sepulcro, entre duas cruzes, no peito e nas costas: a cruz do santo ódio e a cruz do santo amor. E é por isso que a Igreja, no dia de sua festa, dizia no Intróito da missa: Dilexisti justitiam et odisti iniquitatem, fórmula que bem exprime o claro-escuro, ou melhor, o preto-e-branco da vontade bem polarizada pelos mandamentos de Deus.
Santa Catarina de Sena poderia ser chamada a pregadora da santa nitidez. E não só a da vontade, a do preto-e-branco do ódio e do amor, mas também a da inteligência. Toda a doutrina ensinada por Catarina de Sena gira em torno de dois eixos principais que têm particular importância em nossos dias. O primeiro, relativo à ordem do conhecimento, consiste no preceito: “conhece-te a ti mesmo, em Deus”, que Etienne Gilson chamou de socratismo cristão, e que marca toda a espiritualidade da Idade Média, desde Agostinho até Catarina. O segundo consiste no preceito de combater e esmagar a vontade própria, fonte e origem de todos os pecados.
De início convém notar que o “conhece-te a ti mesmo” de Catarina de Sena não tem o sentido de introspecção psicológica, nem o mais alto de exame de consciência. Ambos são bons e úteis, cada um em sua ordem, mas o conhecimento básico que Catarina tem como preceito é de ordem ainda mais elevada. É preciso que a alma se conheça em Deus, que se reconheça como criatura, como ser sustentado pela Causa Primeira, mantido na existência pela vontade criadora de Deus. É preciso que a alma se ponha diante do Senhor e que, nesse refulgente espelho, descubra o seu Nada, o Não-Ser que só é ser por favor, por misericórdia, por bondade de Deus.
Será útil, a cada um de nós, o conhecimento de sua fisionomia psíquica e de sua situação moral, mas nada é menos socrático e menos freudiano do que o conselho de Catarina de Sena. Tanto o antigo como o moderno, cada um em sua pauta cultural, anunciavam a recuperação do homem por uma tomada de consciência e por uma recuperação de si mesmo por seu próprio esforço. Há um racionalismo antropocêntrico em Sócrates e em Freud, que é o oposto do ensinamento catarineano. O “conhece-te a ti mesmo” de Catarina é um conhecimento teologal, um conhecimento em confronto com Deus, um conhecimento que coloca a recuperação do homem num ato primeiro de renúncia, de apagamento e de humildade.
Não se trata de apreciar as peculiaridades de meu ser singular concreto, não se trata de começar por esse tipo de experiência que está na base de todos os existencialismos modernos, e sim de uma experiência fundamental, primeira, em que a alma se reconhece existente por um ato da vontade criadora de Deus, e daí, dessa primeira confrontação tira a fundamental atitude para a vida de relação com o mundo e com seu Criador. Não se diga, porém, que o “conhece-te a ti mesmo” catarineano é uma fórmula puramente essencial, puramente relativa à natureza universal do homem criado à imagem e semelhança de Deus. Não se trata de pensar somente em termo universais, assim como quem diz: o homem é uma criatura de Deus. Não. Trata-se de uma experiência mística, com toda a força existencial, com todas as dimensões do presente concreto e prático.
Quem se conhece, conheça-se a si mesmo, João ou Maria, conheça-se como alma existente diante de Deus. E descubra que é Nada se pretende por si mesma a ser alguma coisa; e reconheça que deve tudo, não somente os adjetivos que a adornam como também o substantivo nuclear de seu ser. A fórmula catarineana não exclui outros conhecimentos mesmos e posteriores, mas exclui categoricamente a primazia de qualquer outro conhecimento reflexo que não seja feito em confronto com o Ser divino.
Mais de uma vez Catarina adverte os seus discípulos contra as introspecções puramente humanas que só geram pecado e confusão. Para descermos aos nossos porões, para nos apalparmos e nos descobrirmos, é preciso antes de qualquer passo inseguro, acendermos a vela da Fé, o lumen Christi que vem da mesma fonte de onde emanou o nosso ser.
Repouse, leitor, o espírito perturbador pelas agitações do dia e pondere bem o que devemos a Deus. Aos homens devemos muita coisa que nos qualifica e nos valoriza. Aos nossos próprios pais devemos um dos mais importantes elos, mas ainda um elo da cadeia que se prolonga e que deve estar presa em algum Ser imóvel e não causado. A outros homens devemos coisas menores e mais superficiais: um favor, um ensinamento, um conselho, uma ajuda. A Deus devemos o existir que é coisa mais ampla e fundamental do que o viver. E é essa meditação que Catarina coloca na base de sua doutrina. “Conhece-te a ti mesmo, em Deus” é um primeiro ato de humildade, um primeiro e fundamental juízo de valor.
O mundo, depois de Catarina de Sena, seguiu caminhos diferentes. Não foi “na doce cela do conhecimento de si mesmo e da bondade de Deus” que o mundo ocidental construiu a nova civilização do individualismo orgulhoso. Estamos hoje em outro ponto da história em que, depois de tantas e tão cruéis experiências, talvez se encontrem ouvidos para a doutrina que coloca o homem no seu justo lugar: elevado, se ergue as mãos para Aquele que o pode enaltecer; rebaixado, se por si mesmo pretende subir. Há muitos problemas materiais e espirituais no mundo de hoje. Há milhares de problemas técnicos, desde o aproveitamento da energia nuclear até o aumento da produtividade agrícola. Há problemas políticos e culturais; há anseios de novas formas no domínio das artes, e anseios de novas experiências em todos os domínios da vida. Uma coisa, entretanto, permanece invariável. E enquanto não soubermos reconhecer a verdadeira colocação de nosso ser, enquanto não soubermos o que somos e o que não somos, vãs serão todas as pesquisas do universo e, de todos os esforços de todos os estudos, só tiraremos pecado e confusão.
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