segunda-feira, maio 01, 2006

A comédia do Estado bisbilhoteiro

Um artigo de João César das Neves, no DN Online:

O nosso tempo pode ser muito cómico, até no meio das dificuldades. Portugal está em crise e boa parte dela vem do Estado. Há problemas gravíssimos na saúde, educação, justiça, finanças. As causas são variadas, mas uma razão é paradoxal: o sector público não faz o que é da sua conta porque anda a fazer o que é da nossa.
Pagamos uma fortuna todos os anos ao Sistema Nacional de Saúde para tratar as doenças, dar consultas, cuidar enfermos; ele não faz isso bem, mas ocupa-se a proibir o fumo. Nós dedicamos muito dinheiro às forças de segurança para prenderem os ladrões e protegerem os cidadãos; em vez disso andam a discutir umas décimas no grau de alcoolemia. Nós esbanjamos milhões no Ministério da Educação para ensinar os miúdos a ler, escrever e contar; em vez disso, dedica-se a congeminar educação sexual. O Ministério das Finanças arruína o País com os seus gastos, mas anda muito preocupado com o sobreendividamento das famílias.
Há umas décadas, quem tratava destes assuntos - tabaco, vinho, sexo, poupanças - eram as tias velhas e beatas. Sendo assuntos do foro pessoal, só algumas bisbilhoteiras se atreviam a comentá-los. Nessa altura, sem pachorra para aturar os ralhetes gongóricos, repudiaram-se as abelhudas moralistas. Passou a viver-se de forma desinibida e emancipada, participando numa sociedade livre e tolerante, que respeitava o indivíduo. Esta foi a grande vitória cultural de meados do século passado.
Rodaram os anos e as coisas regressaram à caricatura do que tinham sido. Agora entregámos os mesmos assuntos, que continuam do foro privado, aos burocratas, polícias, cientistas, fiscais. Já não temos de ouvir sermões edificantes ou censuras enfatuadas, mas somos forçados a suportar inspecções policiais, pagar multas, cumprir regulamentos incompreensíveis, aturar supostos especialistas e estudar manuais escolares sobre esses temas. E chamamos à nossa uma sociedade livre e sem tabus, avançada e descomplexada.
A verdade é que vivemos um moralismo legal mais asfixiante e petulante que qualquer teocracia da Antiguidade. Os decretos ministeriais metem o nariz em tudo, do brinde do bolo-rei aos galheteiros nos restaurantes, dos coletes retrorreflectores nos carros aos locais de piquenique. Os menores detalhes da vida privada estão estatuídos em leis, códigos, despachos. A grande parte dos debates políticos da sociedade actual ocupa-se, não de problemas públicos, mas da vida íntima. Num tempo que se julga livre de dogmas e censuras, o grande tema de partidos, deputados, portarias são os hábitos e costumes, o conforto e intimidade, os valores e opções. Não há paralelo na História para esta ditadura moral, nem sequer na república florentina de Girolamo Savonarola. Chegámos ao paroxismo de governos, baseados em maiorias ocasionais, se acharem com direito a redefinir conceitos milenares, como casamento e família, vida e morte.
Como foi possível esta evolução? Como se entende que os ideólogos da sociedade aberta estejam a repetir, em pior, a atitude que mais repudiam? Há várias justificações para este paradoxo. A primeira vem do facto de, enquanto as velhas beatas estavam interessadas no bem--estar daqueles a quem ralhavam, hoje o Estado diz preocupar-se com terceiros. O motivo da lei não é a limitação da liberdade individual, mas os fumadores passivos, os acidentes rodoviários, a gravidez indesejada, o ambiente poluído, o desequilíbrio financeiro nacional.
Isso quer dizer que numa sociedade aberta é possível ser moralista e constranger as pessoas se a preocupação for com outros. A falácia está precisamente aí. A lei proíbe o fumo, mesmo se os fumadores passivos não se incomodarem ou sequer lá estiverem. O planeamento familiar e educação sexual podem impor um comportamento moral, se for sob capa de resultado científico.
Há um outro elemento curioso. O moralismo estatal de hoje julga-se progressivo porque defende o contrário do que diziam as antigas beatas. O que elas repudiavam é hoje recomendado, enquanto se proíbe aquilo que toleravam. O nosso Governo moralista facilita o divórcio e pornografia, protege os toxicodependentes e endividados. O que ele reprime violentamente é o copito a mais ao jantar, um bom charuto no bar, o lixo nas matas, o sexo sem preservativo. Isso é que são atitudes infames, inaceitáveis, que o nosso tempo tolerante não pode tolerar.
Uma coisa é evidente: as gerações futuras vão-se fartar de rir de nós.

1 Comments:

At 4:28 da tarde, Blogger Francisco Múrias said...

O Drama

O Prof João Cesar das Neves é um aliado de peso na luta contra o estado totalitário.Este artigo procura, sem extremar posições, como é de bom tom, desdramatizar o avanço do totalitarismo chamando de comédia ( A comédia do Estado bisbilhoteiro ) ao drama e à futura tragédia que é este avançar devagar, devagarinho, da ingerencia dos «especialistas», contratados para tomar conta de nós,na nossa vida de todos os dias, na nossa vida privada: o Povo é atrazado mental:logo precisa de quem tome conta dele.

O erro do Prof César das Neves é denominar comédia ao drama.Para o SrJoaquim Costa (Ver http://almapatria-patriaalma.blogspot.com/2006/04/restaurante-com-ordem-de-demolio.html) a demolição do seu restaurante não tem piada nenhuma,para os nove empregados do Sr Joaquim Costa, a demolição do seu restaurante não tem mesmo piada nenhuma.

O erro do Prof Cesar das Neves é o nosso erro: só percebemos quando nos toca a nós.Foi erro da burguesia esquerdista no 25 de Abril,só reagiram quando lhes entraram pela casa dentro, Quando Sr Joquim Costa tem a Assembleia Muncipal do lado dele, vêm uns burocratas de Lisboa, uns «especialistas», que para o bem dele,para o bem dos empregados dele, dos clientes dele,para o nosso bem , lhe arrasam o restaurante.

O erro é de informação,o erro é nosso, da nossa capacidade de conseguir mostrar o drama. A caracteristica do drama é a parte sobrepôr-se ao todo. O medo de hoje sobrepôe-se ao medo de amanhã(1). O drama do Sr Joaquim Costa é bem real, o medo dele é o medo de hoje, se não conseguirmos entrar no seu drama não teremos medo hoje e assim não há drama, há comedia para nós.

Só quando tivermos o medo dos outros , possuirmos a capacidade de entrar no persongem, ou o actor tiver o talento de nos transmitir as suas emoções é que há drama .

A transmissão das emoções dramáticas é condição para haver drama.É por isso um problema de comunicação. Aprender com o mal dos outros é uma maneira bem mais inteligente do que aprender com o nosso mal. Ou será, que como a esquerda, só vamos aprender quando nos entrarem pela casa dentro?
(1) Raymond Chandler -«Ingénua perigosa

 

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