Nos 150 anos de Segismundo Freud
Assinalando os 150 anos do nascimento de "um dos pensadores que mais influenciaram o curso do pensamento moderno", a editora brasileira Permanência (re)publicou alguns textos de Gustavo Corção surgidos fez agora 50 anos, a propósito do centenário do psiquiatra vienense.
Pareceu-me que valem bem a reprodução, para leitura e apreciação dos estimados leitores. Eis o primeiro.
O CENTENÁRIO DE FREUD, por Gustavo Corção
O século vinte será marcado na história como um período de profundas subversões. Comparado com os três anteriores, que por contraste chamaríamos de cartesianos, o nosso glorioso e doloroso século é confuso, contraditório, tumultuoso e trágico. Em todos os domínios da cultura houve ganho, mas o crescimento da humanidade esteve sempre envolvido numa angústia crepuscular que é a antítese da claridade ou da pretendida claridade dos dias em que triunfava um insolente racionalismo. Vejam a física. A herança newtoniana, com sua admirável construção, onde a nitidez de seus conceitos — ponto material, sólido indeformável, equações diferenciais — que faziam da física uma espécie de geometria de massas e forças, achou-se em poucos anos transformada num inquieto probabilismo, numa espécie de drama de incertezas equacionadas, onde os principais personagens se ocultam, um apenas se manifestam por um sinal indireto entrevisto na câmara de Wilson. Vejam a biologia. Cai por terra o esquema bem ordenado, bem arrumado, arrumado demais, do evolucionismo darwiniano e lamarquiano; e onde se via, nos quadros seculares da paleontologia, a natureza a trabalhar aplicadamente na ortogênese dos eqüídeos, como se fora um técnico das coudelarias inglesas, vê-se agora a genética a produzir transformações caprichosas, lotéricas, que não parecem seguir nenhum ideal zootécnico. Na política, o mundo que assistiu à festa da Exposição Universal de Paris, em 1900, onde se anunciava o século da concórdia promovida pelas luzes da ciência, vê agora a ruína de duas guerras totais com todo um cortejo de horrores promovidos pela mesma ciência. No panorama da vida das nações domina a insegurança e o medo da liberdade, como assinala Erich Fromm, por onde se vê que o claro otimismo que vinha da renascença deu lugar à mais obscura das humanas paixões — o medo.
Mas nenhuma dessas transformações foi mais radical e mais caracterizadora da atual cultura do que a revolução psicológica trazida por Sigmund Freud. Agora, depois de Freud e da resposta que ele deu ao antigo enigma proposto pela esfinge de Tebas, não é somente a substância de minha mesa que se perde num enxame de elétrons e de prótons, não é somente o mundo material que se move por forças escondidas na obscuridade dos corpúsculos e somente manifestadas aos nossos olhos sob disfarces; nem é apenas a origem das espécies que se torna confusa, ou a sorte das nações que se torna incerta: agora é o próprio homem que aparece mais enigmático do que nunca, e que já não pode ir e vir inocente e despreocupado, parar numa vitrine, esquecer um encontro, assobiar, coçar o queixo, sem que esses mínimos gestos tenham significação na câmara de Wilson da psicanálise e se inscrevam no que o sábio judeu chamou de psicopatologia da vida quotidiana.
Como disse Joseph Nuttin (Psicanálise e Personalidade, Agir ed.), "estamos longe da clara psicologia das obras clássicas e das paixões transparentes e bem ordenadas de um Racine. O fatum das tragédias antigas, essa potência misteriosa e trágica que do exterior conduzia o homem, tornou-se uma potência interior do indivíduo, a própria força de sua vida psíquica inconsciente."
Antes porém de formularmos qualquer restrição a sua filosofia, agradecemos a Freud, como já o fez Maritain (Creative Intuition in Art and Poetry, Pantheon), o golpe de morte que deu na psicologia cartesiana que limitava a vida psíquica ao domínio do consciente, e que assim interrompia a tradição da psicologia profunda. Desde Platão, como se vê no segundo discurso de Sócrates sobre o amor e a poesia (Fedro), a cultura estava encaminhada no sentido de aceitar a existência de processos intelectuais e afetivos que ultrapassavam o iluminado cenário da consciência. Para Platão, o apaixonado e o poeta eram homens que não se possuíam a si mesmos e que não seguiam os assentados ditames da clara razão. Mas, a quem pretendesse dizer que não há verdade no discurso desses homens possuídos de transcendente loucura, Platão respondia que "de todos os nossos bens, os maiores são aqueles que nos vêm de um delírio".
Esse delírio platônico, mania em grego, tinha entretanto uma exteriorização, uma procedência transcendente que era exigida pela metafísica platônica e por seu excessivo transcendentalismo. Foi Aristóteles que trouxe para a imanência do humano psiquismo as forças delirantes que escapam ao consciente, quando assentou o conceito de razão intuitiva, distinta e complementar da razão discursiva. E em toda a escolástica, na análise do dinamismo do conhecimento intelectual, e sobretudo no papel atribuído ao intelecto agente, havia lugar para a psicologia da profundidade inconsciente da alma humana.
Depois da decadência da escolástica, do nominalismo, e principalmente do cartesianismo, interrompeu-se a tradição da psicologia profunda. E foi por causa desse encolhimento da cultura filosófica, dessa atrofia da pesquisa psicológica, que a humanidade teve a má sorte de dever a um materialista, a um homem de deformada filosofia, a genial re-descoberta das dimensões da alma. Na verdade — e isso é uma das mais dramáticas contradições do freudismo — a derrocada da psicologia racionalista foi feita por Freud, em termos de uma metafísica racionalista e cartesiana. Negando os abismos do espírito, Freud tentou explicar a vida humana com um esquema quase mecânico, quase geométrico, de forças inconscientes. E assim, por estranha e curiosa derrisão, ao mesmo tempo que fornecia matéria para uma renovada psicologia, dava-lhe limites metafísicos mais estreitos do que nunca. Qual é então o resultado do balanço que os séculos futuros levantarão? Foi benéfica ou maléfica a resultante final da obra de Freud? É difícil responder. Tudo dependerá do modo, da simpatia lúcida e generosa com que a cultura presente e vindoura puder assimilar os elementos de verdade deixando na beira do prato as espinhas do erro. O que se pode dizer desde já é que Freud não respondeu de modo inteiramente satisfatório à esfinge, e que seremos todos devorados por ela se engulirmos sem o necessário discernimento o anti-cartesianismo de Sigmund Freud.
("Diário de Notícias", 20/05/56)
Pareceu-me que valem bem a reprodução, para leitura e apreciação dos estimados leitores. Eis o primeiro.
O CENTENÁRIO DE FREUD, por Gustavo Corção
O século vinte será marcado na história como um período de profundas subversões. Comparado com os três anteriores, que por contraste chamaríamos de cartesianos, o nosso glorioso e doloroso século é confuso, contraditório, tumultuoso e trágico. Em todos os domínios da cultura houve ganho, mas o crescimento da humanidade esteve sempre envolvido numa angústia crepuscular que é a antítese da claridade ou da pretendida claridade dos dias em que triunfava um insolente racionalismo. Vejam a física. A herança newtoniana, com sua admirável construção, onde a nitidez de seus conceitos — ponto material, sólido indeformável, equações diferenciais — que faziam da física uma espécie de geometria de massas e forças, achou-se em poucos anos transformada num inquieto probabilismo, numa espécie de drama de incertezas equacionadas, onde os principais personagens se ocultam, um apenas se manifestam por um sinal indireto entrevisto na câmara de Wilson. Vejam a biologia. Cai por terra o esquema bem ordenado, bem arrumado, arrumado demais, do evolucionismo darwiniano e lamarquiano; e onde se via, nos quadros seculares da paleontologia, a natureza a trabalhar aplicadamente na ortogênese dos eqüídeos, como se fora um técnico das coudelarias inglesas, vê-se agora a genética a produzir transformações caprichosas, lotéricas, que não parecem seguir nenhum ideal zootécnico. Na política, o mundo que assistiu à festa da Exposição Universal de Paris, em 1900, onde se anunciava o século da concórdia promovida pelas luzes da ciência, vê agora a ruína de duas guerras totais com todo um cortejo de horrores promovidos pela mesma ciência. No panorama da vida das nações domina a insegurança e o medo da liberdade, como assinala Erich Fromm, por onde se vê que o claro otimismo que vinha da renascença deu lugar à mais obscura das humanas paixões — o medo.
Mas nenhuma dessas transformações foi mais radical e mais caracterizadora da atual cultura do que a revolução psicológica trazida por Sigmund Freud. Agora, depois de Freud e da resposta que ele deu ao antigo enigma proposto pela esfinge de Tebas, não é somente a substância de minha mesa que se perde num enxame de elétrons e de prótons, não é somente o mundo material que se move por forças escondidas na obscuridade dos corpúsculos e somente manifestadas aos nossos olhos sob disfarces; nem é apenas a origem das espécies que se torna confusa, ou a sorte das nações que se torna incerta: agora é o próprio homem que aparece mais enigmático do que nunca, e que já não pode ir e vir inocente e despreocupado, parar numa vitrine, esquecer um encontro, assobiar, coçar o queixo, sem que esses mínimos gestos tenham significação na câmara de Wilson da psicanálise e se inscrevam no que o sábio judeu chamou de psicopatologia da vida quotidiana.
Como disse Joseph Nuttin (Psicanálise e Personalidade, Agir ed.), "estamos longe da clara psicologia das obras clássicas e das paixões transparentes e bem ordenadas de um Racine. O fatum das tragédias antigas, essa potência misteriosa e trágica que do exterior conduzia o homem, tornou-se uma potência interior do indivíduo, a própria força de sua vida psíquica inconsciente."
Antes porém de formularmos qualquer restrição a sua filosofia, agradecemos a Freud, como já o fez Maritain (Creative Intuition in Art and Poetry, Pantheon), o golpe de morte que deu na psicologia cartesiana que limitava a vida psíquica ao domínio do consciente, e que assim interrompia a tradição da psicologia profunda. Desde Platão, como se vê no segundo discurso de Sócrates sobre o amor e a poesia (Fedro), a cultura estava encaminhada no sentido de aceitar a existência de processos intelectuais e afetivos que ultrapassavam o iluminado cenário da consciência. Para Platão, o apaixonado e o poeta eram homens que não se possuíam a si mesmos e que não seguiam os assentados ditames da clara razão. Mas, a quem pretendesse dizer que não há verdade no discurso desses homens possuídos de transcendente loucura, Platão respondia que "de todos os nossos bens, os maiores são aqueles que nos vêm de um delírio".
Esse delírio platônico, mania em grego, tinha entretanto uma exteriorização, uma procedência transcendente que era exigida pela metafísica platônica e por seu excessivo transcendentalismo. Foi Aristóteles que trouxe para a imanência do humano psiquismo as forças delirantes que escapam ao consciente, quando assentou o conceito de razão intuitiva, distinta e complementar da razão discursiva. E em toda a escolástica, na análise do dinamismo do conhecimento intelectual, e sobretudo no papel atribuído ao intelecto agente, havia lugar para a psicologia da profundidade inconsciente da alma humana.
Depois da decadência da escolástica, do nominalismo, e principalmente do cartesianismo, interrompeu-se a tradição da psicologia profunda. E foi por causa desse encolhimento da cultura filosófica, dessa atrofia da pesquisa psicológica, que a humanidade teve a má sorte de dever a um materialista, a um homem de deformada filosofia, a genial re-descoberta das dimensões da alma. Na verdade — e isso é uma das mais dramáticas contradições do freudismo — a derrocada da psicologia racionalista foi feita por Freud, em termos de uma metafísica racionalista e cartesiana. Negando os abismos do espírito, Freud tentou explicar a vida humana com um esquema quase mecânico, quase geométrico, de forças inconscientes. E assim, por estranha e curiosa derrisão, ao mesmo tempo que fornecia matéria para uma renovada psicologia, dava-lhe limites metafísicos mais estreitos do que nunca. Qual é então o resultado do balanço que os séculos futuros levantarão? Foi benéfica ou maléfica a resultante final da obra de Freud? É difícil responder. Tudo dependerá do modo, da simpatia lúcida e generosa com que a cultura presente e vindoura puder assimilar os elementos de verdade deixando na beira do prato as espinhas do erro. O que se pode dizer desde já é que Freud não respondeu de modo inteiramente satisfatório à esfinge, e que seremos todos devorados por ela se engulirmos sem o necessário discernimento o anti-cartesianismo de Sigmund Freud.
("Diário de Notícias", 20/05/56)
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